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Na penumbra, seguia com os olhos a luzinha manuseada pelo terapeuta. De repente, tantas vezes, lapsos. Quando dava por mim, estava em posição fetal, com lembranças remotas de infância.
psi
Wilhelm Reich foi um choque. Almir Muniz, jornalista animado, me apresentou o Combate Sexual da Juventude, escrito na década de trinta para jovens alemães.
Pela primeira vez, uma orientação sexual não moralista. Eu trazia em mim as culpas do catecismo, reforçadas pela leitura do limitado Vida Sexual de Solteiros e Casados, de João Mohana, padre e médico. Que experiências teriam homens com voto de castidade para dar orientações sexuais a inocentes jovens crédulos?
Mergulhei, fui fundo em Reich, li A Função do Orgasmo, Revolução Sexual, Psicologia de Massas do Fascismo, Irrupção da Moral Sexual Repressiva, Escuta Zé Ninguém, Casamento Indissolúvel ou Relação Sexual Duradoura, Análise do Caráter.
Para sentir, só me restava viver. O pecado seria não experimentar. A regra de ouro permanecia: não faço a outros o que não desejo que façam a mim. Romel Alves Costa, psiquiatra, também tinha sido tocado por Reich. Experimentou técnicas terapêuticas com um colega, deixou o emprego no INSS, abriu espaço e colocou anúncio-tijolinho no Jornal do Brasil.
Lá fui eu, por cinco anos, muitas vezes por semana, hora marcada, nu de corpo e alma, me emocionar, tentar me sentir e me entender. Respiração e movimentos, atento. Volta e meia formigamentos. Se os suportava, vinham reflexos. Com os reflexos afloravam sensações, sentimentos, pensamentos. A memória fazia presente o passado. Fichas caiam, compreendia dentro de mim, insights bem vindos. Movimentos de braços, pernas, pélvis, olhos... Em meu corpo, minha memória, minha história.
Na penumbra, seguia com os olhos a luzinha manuseada pelo terapeuta. De repente, tantas vezes, lapsos. Quando dava por mim, estava em posição fetal, com lembranças remotas de infância. Eu no berço, cerca de dois anos, os olhos muito apertados, um jeito de fugir daquele medo que as sombras me traziam. Medo de almas de outro mundo, mulas sem cabeça, defuntos.
Descobri, ali no consultório de Romel, a origem de minha visão distorcida. De tanto apertar os olhos, acredito ter forçado a musculatura local a ponto de perder a elasticidade. Com os exercícios, pouco a pouco recuperei esta mobilidade muscular.
A lente direita de meus óculos diminuiu de quatro graus e meio para zero vírgula setenta e cinco. Depois de usar óculos por vinte e sete anos, passei três anos de cara limpa, enxergando tudo, suficientemente bem. Ao mesmo tempo, medos presentes, antigos e novos.
Passado um tempo, não suportei nem os medos nem as alegrias. Voltei a usar óculos, mas perdi outra inocência: sou responsável por mim mesmo. Reclamo primeiro ao espelho.
Na Equitativa conheci Ralph Viana. A Rádice já estava no sexto ou sétimo número. Era uma revista de psicologia com visão ampla. Trazia da Inglaterra a antipsiquiatria de Laing, da Itália o movimento antimanicomial de Basaglia, apresentava Nise da Silveira e seu Museu de Imagens do Inconsciente, abria espaço para os argentinos, para a latino américa, pro universo psi mundial. Além de Freud, Jung, Reich, Lowen, Alex Polari, outros visionários chegavam a quem abrisse suas páginas.
Meu coração se juntou às ondas. Me ajudei, ajudando. Resumos de livros, administração, distribuição, divulgação, próximo de quase tudo. Imagino: mesmo quem não foi saberá como eram maravilhosas as festas de Ralph quando se recordar das suas próprias melhores lembranças.
Guerrilha cultural, jornais e revistas nasciam, cumpriam sua missão, eram colecionadas lá dentro de quem lia. A Teoria Crítica mergulhava mais fundo. O Luta & Prazer era leve. O Espaço Psi, o Nexos, o Estar Bem, o Bem-estar… como quase todos jornais libertários, eram distribuídos gratuitamente.
E os simpósios? O Alternativas no Espaço Psi – Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise, 1979 ou 80, no Parque Lage, Rio de Janeiro, cento e doze eventos em três ou quatro dias intensos. Em vários espaços, ao mesmo tempo, palestras, debates, vivências, intercalado com festas, recreios, namoros. Clima fraterno, solidário. Com zero ou quase de dinheiro, uma multiplicação de ajuntamentos do que cada um colaborava. Valéria Pereira, Ralph, eu – e muita gente, Sérgio, Dau Bastos, Eugênio Viola, Jorge Velloso, quem mais? – interagíamos com os voluntários, na realização dos encontros.
Mas não éramos sós. Tarefas relacionadas, um a um definia o que se propunha realizar e em que prazo. Exercício de autonomia integrada. Rede sem sabermos que era rede. Parque Laje, eventos diferentes a cada duas horas em cada um dos oito espaços. Quem entrava se dirigia para o que escolhia.
Foram, na verdade, mil e cem simpósios, um para cada uma das mil e cem pessoas presentes. Os conteúdos, os jeitos de fazer se espalharam pelos brasis, adaptados às realidades locais. Hoje teses acadêmicas recuperam memórias, sopram novos movimentos libertários. Há que descobri-los.
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