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Ficaram histórias de almas de outro mundo, mulas sem cabeça, uma foto de uma morta num caixão. No berço, sombras.
lembranças
Escrevo para lembrar:
olha eu aqui, existo. Também para me entender, a mim, a outros, ao mundo. Quero ser reconhecido, amado. Tenho medo do que não compreendo. O que não compreendo, no início, é difuso, confuso. Não enxergo um palmo diante do nariz.
Sinto que viver é perigoso, mas não viver parece ser mais. Quando apalpo, ando, chego mais perto, a vista se acostuma à névoa, o mistério vai clareando, a compreensão substitui o medo, alguma ordem se segue ao caos.
O tempo passa, a memória me trai, multiplicam-se os mistérios. Sessenta e um anos e permanecem marcas infantis, desejos juvenis, dúvidas anteriores a mim. Tem coisas que sinto que sei. Um tanto aprendi do que vivi. Outros tantos do que li, ouvi, encostei, cheirei, provei.
Agora a memória mais remota é porta de rua, gente grande conversando, eu com dois, três anos. Ficaram histórias de almas de outro mundo, mulas sem cabeça, uma foto de uma morta num caixão. No berço, sombras. Os olhos fechados pra fugir dos medos. Tão apertados que distorceram – na segunda infância, sem enxergar direito, fui Luiz Ceguim.
Eu era pobre e não sabia. Não havia o que comparar, felicidade e infelicidade eram desconhecidas. Não havia rádio, telefone, televisão, internet, luz elétrica. Calorão tropical. Farinha na cuia pros que pediam esmola à porta. Água do pote pra beber. Chão de espécie de tijolo. Arroz, feijão, farinha, rapadura, carne seca. Gamela, pilão. Banana, melancia, manga. Café torrado, fogão a lenha. Banho frio na bacia, toalha de saco. Roupa lavada no rio. Praça com cruzeiro, esquina de rua que leva ao cemitério, mortos que passam carregados em seus caixões. O vizinho que estudou muito e ficou doido. A tia mocetona, presa no quarto, canta sertaneja, se eu pudesse, se papai do céu me desse duas asas pra voar...
Hoje sinto que era rico e não sabia. Não sabia se eu era pobre ou era rico. Nem sabia o que era ser rico ou ser pobre. Daquele tempo ficou em mim, forte, a memória afetiva. Já os fatos, como névoas.
Mamãe chegou a Salinas pra dar aulas, aos quinze anos. Papai já estava lá, amado e cuidado pelo pai adotivo. Cheguei quando meu irmão e duas irmãs já tinham nascido. Mamãe, aos vinte e sete, quando se percebeu grávida de mim, imagino o sentimento imediato: ah, não! Talvez só minha imaginação, não ter sido desejado no primeiro momento. Perguntei a mamãe se isto verdade. Ela disse: não.
Soube por mamãe que, aos 29, cuidou cuidar da própria vida. Um filho em cada casa amiga, o mais velho com ela, foi se capacitar em Belorizonte. Isso facilitou a nossa mudança, dois anos depois, para Montes Claros, onde mamãe estava em casa, próxima a muitos dos seus catorze irmãos, parentes e amigos de infância.
De Salinas minha memória traz os cheiros, os sons, o sol, uns medos, uns deslumbramentos. Imagens das pernas de presos pra fora das janelas da cela, um clima de festa na feira dos sábados – bruacas, animais, sacos de grãos e farinhas, gente, muita gente. Eu num vai e vem, movimento no movimento. Panelas, boizinhos e cavalinhos de barro, colheres de pau, biscoito, requeijão, pão de queijo, tacho de cobre. Um bocado de mistérios.
Já em Montes Claros, medo mesmo tive no catecismo. Aquele inferno que nunca acaba, chamas eternas, pavores. E as dúvidas do que era pecado mortal, venial. Quaresma, panos roxos cobrem os santos, carne nenhuma à mesa. Os olhares tristes das imagens, os ferimentos de cristo. Os dez mandamentos, os sete pecados capitais. A proibição do ócio, do sexo, da raiva, da alegria, das expressões de emoções. Eu era pecador e não sabia. Antes eventualmente sofria, agora o sofrimento estava dentro de mim, constante. À crueldade dos adultos se somou a das crianças.
Mamãe definiu: brigou na rua, apanha em casa. Inseguro, provocado, tirava os óculos, fechava os olhos, dobrava o corpo e dava murros às cegas. Apanhava na rua, apanhava em casa. Até hoje não sei brigar.
Mas brincava de roda, pegador, seu rei mandou dizer. Ouvia serenatas, me lambuzava de manga, pipoca era uma festa. O cheiro que a chuva provoca na terra, finca, bilboquê, luta de espadas, queimada, papagaio na linha, pé no chão.
Latim, matemática, desenho, trabalhos manuais, português, geografia, religião, história. Um pouco de francês, inglês, coral. Recreio, trabalho na cantina. Férias. São João, passeios no mato, banho de rio. Tarzan, Mandrake, Fantasma, Cavaleiro Negro, Zorro. Matinê, seriado, Rock Lane, Roy Rogers, Kung Fu.
A boiada passando na porta de casa. Os compromissos escolares, as obrigações caseiras – comprar o pão, engraxar sapatos, passar cera no assoalho, arrumar a cama, levar e trazer o que for preciso, eventualmente buscar marmita. E olhares afetuosos de quem gostava de si. E de mim.
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