Meu primeiro livro.
Aqui os tempos se misturam
tanto quanto os assuntos.
Fim e meio
não sabem onde começam.
Sorte de quem escolhe o que lê.
E salta o que não lhe importa.
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http://pt.slideshare.net/LuizFernandoSarmento/livro-uma-vida-incomum-como-qualquer-um
uma vida incomum
como qualquer um
Luiz Fernando Sarmento
para
Felipe e Pedro
e quem deseje
Índice
01 Fora de Ordem
02 Mamãe
03 Um quase nada de
quase tudo
04 Redes
05 Agências de inFormações
06 Vários eu
07 Lembranças
08 Psi
09 Rotina
10 Incertas
11 Reflexos
12 Balanços
13 Programas de TV
14 Piripaco
15 Talvez
16 Outro dia, um como
outro
17 Pausa
18 Juntomisturado
19 Manual de manutenção
20 Hoje, já passado
21 Insights?
22 Ficção,
desarrumações
23 Sensação de
juventude
24 Anotações
Aqui os tempos se
misturam tanto quanto os assuntos.
Fim e meio não sabem
onde começam.
Sorte de quem escolhe
o que lê.
E salta o que não lhe
importa.
1
Fora de ordem
Tudo um
tanto confuso,
não sei direito quem sou, que faço. Só sinto,
só penso. A novidade é que aqui e agora estou estruturado, como desejei e
produzi. Filhos cuidados, casa com cada coisa em seu lugar, despesas básicas de
todo dia supridas – comida, condomínio, telefone, gás, luz, net-internet. Posso
acordar e, em cada momento, escolher o que fazer da vida. Os desejos vão, vêm,
se transformam. As variáveis que interferem nos meus desejos são inúmeras,
inesperadas, fora do meu controle. O que é agora pode ser diferente depois.
Quase como rotina, cuido de mim; alongo ao
acordar, cozinho, lavo, mantenho o básico. Cada dia tem sido outro. De duas em
duas semanas um casal arruma o apartamento. Outros amigos e colegas copiam
vídeos que realizei só ou em parcerias, incluem na internet, compõem programas
alternativos de TV. Participo de encontros de interesse comum, ajo reativo ao
processo de cada parceiro, despreocupado de tempos. Em relação ao bem-estar meu
e do mundo, procuro distinguir o que está ao meu alcance. Dentro de mim, cada vez
mais tranquilo. Isto ontem, hoje de outro jeito, amanhã não sei.
Quero agora escrever, fora de ordem.
Princípio, meio, fim se misturam. E, dependentes de minha memória, se perdem ou
nem se completam. Imagino – e proponho agora – cada leitor, se houver, cuide
editar o que leia. Escolho o mais próximo do que sinto síntese. Vez ou outra me
repito, como pra recordar. Detalhes, aprofundamentos, talvez mais adiante.
Compartilho
o que, inda que verde, me faz bem e imagino
possa fazer a outro.
Se edito a prosa, encontro o verso. Se edito
o verso, o hai-kai? Se edito o hai-kai, o silêncio. Nem tudo se resume a isto.
Confesso, não sei direito o que é hai-kai.
Em pleno vôo, a aeromoça orienta. Quando as
máscaras caírem, primeiro cuide de você, depois dos outros, mesmo crianças.
Analogia imediata, cuidarei melhor do outro, se antes cuido de mim. Como você
pode cuidar de mim, se não cuida de você? A pergunta que fiz a um amigo, tenho
feito ao espelho: como posso cuidar do outro, se não cuido de mim?
Tento inventar, descobrir, construir jeitos
de relacionar-me que me supram. Aprendo que não posso dizer sim a algo que não
está em mim.
Facilita minha vida quando separo a loucura
do outro da minha loucura. Se a mim não me permito, a outros inibo. E vice
versa. Quando não beijo, por exemplo, muitas vezes não suporto outros se
beijarem. Muitos “não!” que me chegam, são “loucuras” de outros.
Como Cacilda Becker, não tenho tido tempo pra
lutar contra, só a favor. Como, talvez, Tom Jobim, aprendo que democracia é muito
bom, inda mais se a pratico aqui com meus colegas de trabalho, lá em casa, com
quem está ao meu alcance. Descubro que meus pensamentos são escolhas minhas.
Que gentilezas têm me gerado gentilezas. E quanto mais me conheço, melhor vivo.
Na tentativa de tornar mais simples minha
vida, aprendo que quanto menos tenho, mais leve me sinto. Um par de sapatos é
suficiente, três me dão mais trabalho que um. Os objetos é que me têm, não eu
que tenho os objetos. Carros dão trabalhão. E plantas, animais: é o cachorro
que me levaria a passear, não eu a ele. Não posso deixar a casa sozinha se há
plantas pra cuidar. Qualquer coisa que tenho, me dá trabalho. Um bibelô? Tenho
que espanar. Se tenho em excesso, trabalho em excesso. Sou assim quase escravo
do que tenho. Os objetivos também: pautam minha vida.
Mas meus filhos não são meus, quase sempre eu
me guio pelos meus filhos. Sinto bem. Os saldos positivos da minha vida estão
relacionados aos afetos. Aprendo que um meu capital básico são as relações que cultivo,
os afetos que me envolvem. Que sonhar me faz bem: me orienta o que faça. E que
há vazios em mim que só eu posso aprender a preencher.
Alguma compaixão me nasce em relação a quem
dedica a vida a acumular coisas e sentimentos, em tentativas de preencher
vazios que em si mesmo desconhece. Aprendo que melhor aprendo, fazendo. E que
melhor ensino, sendo. E eu, que não consigo resolver esta pretensão de que sei um
tanto sobre quase tudo?
Como
eu,
imagino que uma mãe, um pai, professor,
patrão, governante, sacerdote... desejam que um outro seja o que não é.
Eventualmente inconscientes, projetam no outro seus próprios desejos. Nuns e
noutro, quando cai a ficha – se cai – a consciência se dá, a compreensão se
instala, o comportamento tende a mudar. Quando a ficha não cai, permanecem –
eternas? – incompreensões.
Livre
associo,
misturo de um tudo. Nas ruas, louras, louras,
louras. Chego mais perto, são negras as raízes dos cabelos. As louras, na
verdade, são morenas. Barbie, modelo de beleza, american way of life, é referência. Nas falsas-louras nativas,
talvez angústia por não serem semelhantes aos ídolos adotados.
Comunicação
é meio,
mesmo o meio sendo em si mensagem. O primeiro
desafio que vivo é perceber o que meu próprio inconsciente tenta me comunicar.
Apesar dos impedimentos por parte de outras partes de mim. Fico atento aos
sinais que me dão meus atos falhos. Ato falho não falha!
Conteúdos que me tocam me emocionam. Minha
memória afetiva, sinto, permanece. Minha memória racional me escapa. De que
mesmo eu estava falando?
Quero aprender, como diz Simone de Beauvoir,
a “viver sem tempos mortos”.
Concordo com Sérgio Mello: os planos funcionam, difícil é o cronograma.
Também com alguém, não me lembro quem: seja o que deseja ser.
De vez em quando me pego muito eficiente, no
caminho errado. Perdi minha vida por
educação. Foi Verlaine quem disse?
Esta aprendi com Adalberto de Paula Barreto –
a pergunta que antes, submisso, fazia a outros, agora tenho perguntado ao
espelho: que você quer que eu queira,
pr’eu querer?
Aprendi e me tem feito bem: meu humor como
indicador. Se estou de bom humor, estou bem. Se de mau humor, estou mal.
Identifico-me com o que entendi do FIB, Felicidade Interna Bruta.
Meus filhos, meus amigos aprendem comigo mais
pelo que sou do que pelo que falo. Vice versa, eu também.
Meus desejos me mobilizam. Eu me movimento a
partir dos meus desejos. Desejos são básicos aos meus movimentos. Procuro
descobrir quais meus desejos.
Tento construir, pelas ações, pontes entre
desejos e práticas. Pra facilitar, só quando preciso, numa coluna listo as
tarefas que julgo necessárias para a realização do desejo. Ao lado de cada
tarefa, em outras 4 colunas, prevejo datas, custos, responsáveis e anoto outras
observações. Dentro de mim, o conflito entre prever-planejar e não ter agenda,
não limitar o futuro. Talvez eu possa planejar e adaptar à realidade o que
antes previ.
Se não gozo quando transo, permaneço com uma
vivacidade juvenil, o prazer permanece. O gozo já não é meta. A meta, se
existe, é o prazer em cada momento.
Onde vai meu pensamento, vai minha energia.
Aprendo escolher pensamentos.
De Freud entendi que muitos dos conteúdos dos
sonhos estão relacionados a acontecimentos do dia anterior. Quando suporto
alegria, antes de dormir, leio o que me faz sentir bem. Quando acordado, evito
situações que me gerem sentimentos desagradáveis.
Outros em outras épocas já descobriram um
tanto disto tudo. Esta memória coletiva onde está? Sei que quando relaxo,
capto.
Volta e
meia me pego,
inconsciente, estragando prazeres: ao brigar
com a namorada quando estava gostoso, ao chutar pedra quando a caminhada tava
boa, ao detonar um trabalho que me trazia enlevo... Muitas vezes senti como
insuportável a alegria. A minha, as de outros.
Percebi o mesmo em outros. Permaneço
desconfiado que isto se relaciona com minha cultura cristã, que proíbe emoções,
prazeres – vide os 10 mandamentos e os 7 pecados capitais. Serei castigado –
agora ou depois da morte – se transgrido alguma regra. Perdi minha inocência
quando fui catequizado. Antes, em mim só existia um senso ético. Não existiam
pecados mortais, veniais, infernos. A moral veio como doutrina.
Internalizei as regras e as consequências de
transgressões: dentro de mim associo o prazer ao castigo. Logo que percebo
prazer, lembro castigo. Evito castigos eliminando prazeres. Os prazeres se
tornam então insuportáveis.
Agora, consciente, aprendo ser mais
responsável por mim mesmo, minhas ações, minha vida. Sei que já não devo
reclamar da pedra ao tropeçar nela. Eu é que não prestei atenção. Reclamo antes
ao espelho.
Algumas vezes minha vida ficou sem sentido.
Tanto fazia viver, morrer. Não cheguei a procurar a morte. Mas a vida tava sem
gosto. A lembrança dos filhos me animava. Eu era resiliente e não sabia: vim do
quase fundo do poço ao equilíbrio dinâmico de agora.
Antes dos 8 anos já sabia da proibição dos
prazeres. Vivi prazer e medo em secretas descobertas infantis. E punhetas
silenciosas das 2 da tarde aumentavam culpas, pavores e rezas noturnas. Aos 14,
no beco dos meninos, tive a sorte do acolhimento tranquilo naquele corpo
diferente do meu. Aprendi a gostar de mulher.
Mas perdi mesmo a grande inocência quando
sofri o catecismo. Não sabia de pecados – mortais, veniais – e castigos. Ficou
um medo enorme do inferno eterno, chamas que nunca acabam. Foi como um insight ao contrário, um indark.
Wilhelm Reich foi um choque bom. Perdi outra
inocência, ganhei consciência: sou responsável por mim. Hoje leio sem ter que
fazer provas. Só em boa companhia, adoro orelhas de livros, vejo trechos de
Freud, Jung, Nise, Bubber, Moreno, Lobsang, Rajneesh, Lacan, Platão, Voltaire,
Saint-Exupéry, Szasz, Chang, Capra, Moody, Rogers, Beauvoir, Lobato, Quino,
Monroe, Veríssimo, Barreto, Cançado, Ferenczi, Angeli, Brunton, Eco, Laing,
Freire, Ziraldo, Ludemir, Nietzsche, Feitosa, Pessoa, Moraes, Pontes, Chacal,
Robin... e por aí vou. Se entendo, ai,
que bom. Se não, vou em frente, volto, folheio. Antes de dormir, então,
leituras facilitam o sono, os sonhos. É uma forma de oração, cuidar do que me
vai dentro.
As sínteses de Pontes, o Roberto: todo mundo é, todo mundo pode ser. E: o saber em todo ser. Mais ainda: amor e medo, emoções básicas.
Lembro a Chiquita
Bacana de João de Barro: existencialista,
com toda razão, só faz o que manda o seu coração. E talvez Sartre: não importa o que fizeram com minha vida.
Importa o que vou fazer com o que fizeram da minha vida. E o título do livro póstumo de Winnicott: Tudo Começa em Casa.
Atos fractais,
um pedaço representa o todo? Pequenos atos
têm me dado informações sobre quem os pratica. Quem joga na rua o lixo que tem
na mão me informa que não cuida dos outros. E talvez não cuide dos outros
porque não aprendeu cuidar de si. Imagino: se não cuida de si, como cuidará de
outros?
Mas, como diz Barreto, o Adalberto de Paula, só reconheço no outro o que conheço – tenho?
– em mim. Pelo que percebo, outros
pequenos atos me denunciam. Se jogo lixo no chão, se falo grosso, se furo fila,
se bato em criança, se desperdiço água, se critico alegria, se rio das
pegadinhas, da desgraça do outro...
Parece
óbvio,
mas só há pouco tempo constatei que meu humor
tem sido meu melhor indicador: se estou
de bom humor, estou bem.
Agora sei que só consigo comunicar-me com
quem me escuta. E vice versa. A comunicação se dá quando entendo o que me foi
dito. E sou entendido.
Eu me sinto bem com cada ato que realizo para
difundir o que sinto me faz bem.
Ouvi e concordo: minha saúde é coisa muito
séria para ficar nas mãos de outros. Se não cuido de mim, quem cuidará?
A autonomia que me permito, desejo a cada um
que a deseje.
O sítio de mamãe chamava sossego. Era seu
desejo. Sem saber disso, meu terapeuta Romel sintetizava em cumprimento: saúde,
sucesso, sossego.
Há espectadores que acreditam mais na TV que
na realidade?
Em mim, é lento o processo de absorção de uma
nova ideia, de mudança de comportamento. Há 7 anos desejo um sofá. Há 35 quero
escrever um livro. Há 50 sonho ser dono do meu próprio nariz. O que é novo me
incomoda, me ameaça. Já desenhei o sofá, tento pela enésima vez escrever um
livro, mas inda confundo meu nariz com o de outros.
Com defesas ativas como as minhas – que
atrapalham a realização dos meus desejos originais – imagino quantas inovações,
descobertas filosóficas, tecnológicas, insights,
invenções, criações... estão disponíveis para a humanidade e não nos chegam ao
conhecimento.
Percebo
que boa parte dos custos de empresas e
empreendimentos é gerada pelos controles. Controlar dá trabalho, dá despesas.
Por outro lado, a necessidade de controles diminui quando confianças mútuas
estão presentes. Nas relações pessoais, familiares isto é nítido.
Tenho certo que necessidades de controle
diminuem, se cultivadas relações de confiança. O medo gera controles. O amor gera
confiança.
Percebo em minha prática individual que
quando remunero satisfeito – financeira e emocionalmente – serviços que me são
prestados, recebo de volta empenho espontâneo, com envolvimento e boa vontade.
Quando cuido do outro, o outro cuida de mim, naturalmente.
Admiro a inteligência dos empresários que
repartem lucros com quem com eles trabalha. É natural que cada trabalhador
reconhecido se sinta reconhecido. E, tanto como se fosse seu, passa a melhor
cuidar de tudo ligado ao trabalho: seja de equipamentos e insumos, seja de
relações humanas com o público, colegas, demais stakeholders.
Administrador, gerente que cuida de quem
trabalha próximo dorme tranquilo, vive melhor, tem assunto com os filhos. Não
precisa esconder dos filhos malfeitos para os quais co-labore. Feitores –
antigamente? – tinham esta função: obrigar ao outro fazer o que não quer.
Administrador que age amorosamente tem retorno amoroso. Parece complicado, mas
é simples. É o tal do amor. O tao do amor?
2
Mamãe
Após a morte de mamãe, minhas irmãs sugeriram
que eu escrevesse um necrológio. 1919. Nasce Heloisa. Vem para os Anjos, família grande numa Montes Claros
criança. Amizades profundas com primas vizinhas de quintais. Tudo tranquilo
neste porto protegido. 1928? Bum! Morre o pai, ficam sua mãe Antônia e 8
filhos. O avô paterno, Antônio, orienta, distribui. Cada filho um tio, um
parente. 1934, de novo, seu mundo treme. Com a irmã Wanda, sós, vai pro lugar
que não conhece, Salinas. Imagino inseguranças, saudades, solidões. Vive
compaixões, compartilhamentos, cria vínculos. Aprende na vida, ensina no Grupo
Escolar. Enamora Rodrigo.
1938, casa. Vêm quatro filhos. Cai a ficha,
acredita em si, toma as rédeas.
1948. Salinas fica pequena. Agora vejo, a
história como se repete – pra abrir caminhos de liberdade, distribui por um
tempo os filhos: Lina fica com Wanda, Stella com tia Odília, Luiz com d. Rosinha.
Rodrigo, o marido, cuida de si. Mamãe dá o salto. João vai junto. Belorizonte,
Instituto de Educação, mergulha. Volta, respira, arruma as malas, barriguda de
Heloisa Helena: volta às origens, Montes Claros, 1951. O marido, é o possível,
vai à luta em São João do Paraíso. Contribui de lá. Só com os filhos, a mãe,
como defesa, controla. Tudo ou quase. Articula. Rodrigo regressa, a família
recompleta. Sempre, dá aulas, educa. Nos intervalos, costura, remenda, orienta,
organiza.
1954. Nasce o D. João Antônio Pimenta,
Heloisa diretora, funda um Grupo Escolar. À noite dá aulas no Sesi. Por um
tempo, acumula o Colégio Diocesano. Conhece, reconhece gente, constrói
amizades. Cuida da família, corresponde aos que solicitam, dá as mãos, ensina,
ensina, educa, educa, trabalha, trabalha. Agora cuida também das normalistas: ensina
a ensinar. Planta plantas, rega como planta e cultiva ideias, conhecimentos,
relações. Solidária em momentos necessários, fortalece o bem. Guarda
confidências. Reflete, aconselha. Direto e reto. Não deixa para amanhã o que é
de hoje. É consigo o que é com outros. Ama os próximos quase como aos filhos.
Delegada de ensino. Gosta. Conversas e
conversas e decisões. Interage. Norte de Minas e capital. 42 municípios sob sua
tutela. Viaja, vai, vem, vai, vem. Modera, modela, representa. Articula para
tornar viável, realiza junto. Integra órgãos estaduais e cidades. Com a equipe,
consensua. Assim, 50 anos de trabalho efetivo. E mais 18, aposentada, sutil nos
afetos, atenta, pronta para escutar, pensar, falar, agir.
Em toda a vida, emociona-se com serenatas e
boas conversas ao anoitecer. Tem mão boa para plantar. Cava, semeia, rega.
Adora uma arrumação. Quem estiver perto entra na roda. Nos momentos mais
diversos, exercita a solidariedade, constrói vínculos, valoriza amizades.
2002. Gasto, o corpo cansa. Rápida como
sempre, prevê, organiza, distribui o que suou. E vai. Minha mãe permanece em
mim, em nós.
Passado
um tempo,
quanto mais vivo, cultivo minha mãe boa. Caem
em névoa os beliscões, os olhares determinantes, as limitações. Sinto que me
compreendo quando compreendo mamãe. E olha que, raivoso, briguei com ela um mês
antes de sua morte. Mamãe estava com câncer brabo, ali em órgãos que filtram,
se espalhando. Num momento, ela, aos meus olhos, maltratou uma moça que dela
cuidava. Eu – que nunca lhe havia falado grosso – fui duro, impulsivo, gritei
com mamãe. Ela ali, me olhando estupefata, de baixo pra cima, da sua provisória
cadeira de rodas. Nos dias seguintes, emudeceu comigo, não respondia a meus
“benção, mamãe?”. Diante de minha insistência, foi clara: “Perdoar, perdôo. Mas
esquecer, não esqueço.”.
Em relação a mamãe, não sei explicar direito,
sei que meu coração está cada vez mais tranquilo. Desconfio que é porque fui
sincero comigo mesmo, com ela. Como fui pró-ativo em muitos momentos que tomei
a iniciativa do abraço, do beijo, da palavra doce. Parece que, como mamãe, sou
assim, variado também em doce e amargo.
3
Um quase nada de quase tudo
Então
ficamos assim: falo
bem de você, você fala bem de mim.
Uma dificuldade enorme, aqui, de aceitar
elogios e agradecimentos. Vou aprendendo, mesmo sabendo que muito do que me
move é minha própria satisfação. E identificação. Relembro Marx, o Groucho: clube que me aceita como sócio eu não entro.
Não deve prestar.
Sinal de saúde, me orgulho: não sei onde fica
meu fígado.
Sujismundo era um personagem sempre rodeado
de moscas, sujo, sujador. A campanha na TV foi eficaz: quem jogava papel na
rua, se olhado como Sujismundo, se envergonhava, recolhia o papel, se recolhia.
A atitude sujismundo gerava culpa e vergonha. A cidade do Rio ficou mais limpa
por um tempo. Tive notícia também – salvo engano, ali pela Escandinávia – de
anúncio audiovisual em que um carro passava excessivamente veloz e, plano
seguinte, uma moça fazia um sinal para outra moça – dedo indicador se aproxima
de dedo polegar – sugerindo a pequenez talvez do pau do motorista. Anúncios que
geram culpa e vergonha.
Imagino agora campanhas publicitárias
positivas gerando satisfação e prazer, valorizando a afetuosidade de quem
contribui pruma vida coletiva melhor. É que, passado um tempo, meus convivas
contemporâneos acreditam mais no que sou, no que faço, do que no que falo e não
faço e não sou. Alegria gera alegria, gentileza gera gentileza. Exemplo de
campanha assim, pra cima, relembro os conceitos de Pontes para divulgação de
colônia de férias pra crianças numa favela: todo
mundo é, todo mundo pode ser. O outro, este voltado para a universidade
popular: o saber em todo o ser.
Agora eu sei. Cada ato talvez tenha um
significado. Quando fumo, agrido meu próprio corpo. Se ajo assim comigo, com o
outro mais ainda. Sou então coerente quando jogo cigarro no chão, invado um
sinal vermelho, dou um tapa, um tiro, solto uma palavra indelicada. Mas já sei
que outros equilíbrios são possíveis, quando transcendo minha cultura masoque,
cuido de outros ao cuidar de mim. Se não cuido de mim, como cuidarei de outros?
Tenho
lembranças do século XIX,
são reais. Na década de 40 do século XX,
Salinas estava longe dos grandes centros. As modas chegavam tempos depois. Sem
rádio, televisão, jornal. As notícias corriam, lentas, de boca em boca. Os
causos contados na porta de casa eram de mula sem cabeça, almas penadas. Os
costumes eram antigos. No porão da sua casa, tia Odília guardava os ossos de seu
pai, meu bisavô. Pra se pentear, ela subia num banquinho e só então soltava os
cabelos que chegavam ao chão. Fazia linguiça. Enfiava ingredientes na tripa de
porco. Para socar, usava uma chave grande, antiga. E quando curioso eu
perguntei: que é isto, tia?, ela – chouriço, menino.
Carrego dentro de mim o que então vivi.
Carrego tudo, mesmo agora, cidadão do mundo, o horizonte mais próximo, tudo tão
mutante.
Repito e tento: separar o que é meu, o que do outro, especialmente os sentimentos. E quanto aos objetos e moedas, mais do que possuo as coisas, são as coisas que me têm.
Wilhelm Reich me ensinou, na teoria e na
prática: meu corpo traz minha história.
Quando faço o que gosto, sem perceber trabalho o tempo todo.
Quando cai minha ficha, vejo o mundo
diferente.
Tento crescer, mas inda é difícil suportar
alegrias. Tristeza é fácil, matava no peito todo dia.
Posso me comunicar com o mundo. Quando
compartilho, me acalmo, melhoro.
Se não me permito, a outros inibo.
Dou o livro que gosto, nem sei o que o
presenteado deseja. Só dou o que tenho.
Meu corpo hoje me fala, volta e meia me relembra: se quero dormir bem, 5 horas antes já não como. Se como, regurgito, durmo sentado.
Nos sonhos realizo meus desejos?
Parece que quando vivencio
situações sou quem melhor poderia conhecer estas situações que vivencio. Assim,
talvez, potencialmente, seja eu quem melhor saiba das soluções das questões que
vivencio. A consciência desta
sabedoria talvez determine a possibilidade de ação transformadora em mim. Há
expressões de outros – falas, atos, artes, escritos... – que me despertam
consciências.
4
Redes
Fecho os olhos
e respondo a mim mesmo: o que aqui procuro? O que aqui ofereço?
Imagino agora que posso
expressar para todos: o que procuro e o que ofereço. Se este canal de
comunicação se estabelece entre eu e outros, tendo cada um de nós esta
liberdade de comunicação, estaremos em
rede.
Sei, imagino que todos sabemos, que conhecimento é poder. E compartilhar conhecimento é compartilhar poder.
Cássio Martinho me
ensinou: rede
é um esforço individual e coletivo de
comunicação, um compartilhamento
de informações. Na rede, ausência
de hierarquia, presença de iniciativa espontânea de quem participa. Eu
praticava redes e não sabia.
Redes fazem parte de um processo que pode chegar a transformações individuais e coletivas.
Comunicações entre pessoas possibilitam criação de relações, vínculos,
confianças, descobertas de interesse comuns – temáticos, territoriais... E
trocas, construções de parcerias, realizações de objetivos comuns. Assim se
formam capitais sociais. Trabalhos sociais e comunitários dependem
diretamente da participação coletiva, de cada um.
Redes espontâneas:
uma criança nasce, a tia telefona pra prima, que telefona pra avó, que fala
pros netos, que espalham pros amigos... A rede nasce, cumpre sua função,
desaparece. E reaparece quando necessária. Muitos agora sabem que a criança
nasceu.
São inúmeros os
tipos de redes: presenciais, virtuais, fomentadas, redes de redes. Redes são
diferentes de cadeias. Redes pressupõem espontaneidade, ausência de hierarquia.
Cadeias não: têm gente que manda em gente. Redes quando se somam, se multiplicam. Multiplicam
de tamanho quando se articulam com outras redes. Por exemplo, quando se
comunicam entre si – movidos por interesse comuns – setores públicos, setores
privados, movimentos populares.
Facilita a formação
de redes presenciais a
ausência de discriminação de raça, crença, facção, partido político, ideologia,
gênero, sexo... Também um espaço
neutro, onde cada participante se sinta à vontade, seja evangélico, espírita,
católico, budista, maometano, taoista, ateu, agnóstico, duvidoso... Ou negro,
branco, mulato, amarelo, albino, pobre, rico, remediado, democrata, liberal,
socialista, anarquista, hétero, homo, bi, pan...
Expansões da rede são estimuladas quando
disponibilizadas informações básicas – lista de presenças, com telefones,
e-mails... – tanto durante os encontros quanto logo depois virtualmente pela
internet. Mais ainda se também distribuídos, para cada um e para todos, os
classificados sociais, que são descrições das ofertas e procuras que
aconteceram durante os encontros. Os Classificados
Sociais e as Listas de
Participantes servem para facilitar contatos e intercomunicações. Tendo
estas informações em mãos, depende de
cada um a iniciativa de contatar e articular parcerias.
E, naturalmente – base para relações humanas
saudáveis – vínculos afetivos fortalecem redes.
Linha do tempo
Desde cedo trabalho. Hoje vejo o que plantei –
onde investi minha vida, meus tempos e energias – e, acredito, compreendo um
tanto porque me sinto bem à medida em que amadureço.
Em casa engraxava sapatos aos sábados, ajudava
a passar a cera no assoalho, colaborava um pouco nos serviços domésticos. Aos
12, informalmente, vendi cestas de natal Titanus.
Aos 16, dei aulas particulares de matemática. Aos 17 ou 18, primeira carteira
assinada, auxiliar administrativo de uma distribuidora de bebidas. Em seguida,
ou paralelo, não lembro, repórter policial do Jornal de Montes Claros. E fundei e publiquei, com amigos, o Setentrião, jornal distribuído
gratuitamente.
Já na Universidade de Brasília, fui monitor de
estatística. Nas férias estagiei em escritório de planejamento e elaboração de
projetos. Dei aulas pela Fundação Educacional do Distrito Federal, trabalhei no
Ministério da Agricultura, no Fundo Federal Agropecuário, um pouco para o
Ministério da Educação. Com parceiros, montamos uma pequena tecelagem de
camisas de malha. No Rio, agora no INCRA, participei de um grupo de trabalho
que preparava uma reforma agrária: cuidei da seleção e treinamento de
captadores de dados relativos a parceiros, arrendatários, proprietários
rurais...
Em Amsterdam, quase como umas férias,
descobertas pra vida inteira, ampliação de visão de mundo. Em Londres fui
modelo para desenhistas, operário de obra, porteiro e vendedor de sorvetes num
teatro, voluntário na feitura de pães integrais. De volta ao Rio, funções
variadas em um punhado de longas-metragens. Assessorei a direção da Embrafilme
e, ainda lá, cuidei por seis meses do programa Coisas Nossas, veiculado pela TV Educativa. Na Globo Vídeo fui
gerente de marketing sem saber direito o que era. Pulei para novos negócios. Na
Fundação Roberto Marinho dei continuidade ao Vídeo Escola, projeto que escrevi
– a pedido da direção – e gerenciei a
implantação.
No correr da vida realizei registros em vídeo,
especialmente na área psi, que sempre me atraiu. Com Ralph Viana, Valéria
Pereira e muitos voluntários e parceiros ativos realizamos, no Parque Lage, o
simpósio Alternativas no Espaço Psi –
Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Antes, durante anos, colaborei com a
Rádice, revista de psicologia. Um
pouco com o Luta & Prazer, jornal
libertário de espírito juvenil. Fui sócio de uma livraria, a Espaço Psi. Estive em Moçambique, como
cooperante junto ao Instituto Nacional de Cinema.
Realizei e produzi, só ou com parceiros,
algumas dezenas de vídeo-registros e documentários. Na maioria, singelos,
focados mais nos conteúdos que nas formas. Candomblé, Ilha Grande, Energia da
Vida, Auto-hemoterapia, Aparelhos Orgônicos, Aids – Boas Notícias, uma série:
Psicoterapias Corporais. E Quilombo, Folhas Sagradas, Terapia Comunitária, outra
série – Rio, Estado de Alegria. Também Artistas de Rua, Una Madre de Plaza de
Mayo, Práticas Chinesas de Auto Cura...
Na década de 80, criei e experimentei um método,
Videomobilização: os limites dos
conteúdos eram nossos limites, a propriedade da imagem e do som era da pessoa
objeto de gravação. Sugeríamos que, quando assistisse o que foi gravado – só ou
em companhia do seu terapeuta – desse mais atenção aos sentimentos provocados
pela sua própria imagem e sons. Compreensões mais profundas corresponderiam a insights tão desejados. Muitos dos
clientes eram terapeutas.
O Sesc Rio
Mergulhei no Sesc em 2.000. Éramos poucos mais
de 400 para 3 vagas. 7 meses, o processo de seleção. Fui contratado como
coordenador técnico e locado no Sesc Ramos, ao lado do Complexo do Alemão.
Minha função era cuidar da programação, facilitar o trabalho de colegas que
produziam eventos, atividades sócio-culturais, esportivas, de lazer e promoção
da saúde.
Quando cheguei, uma média de 150 pessoas
frequentavam diariamente os espaços da unidade operacional. Quando sai dali pra
trabalhar na sede, 1200 a 1500 pessoas diárias. Tudo muito em colaboração com
os colegas da época que apoiaram transformações. Logo no início, com a intenção
de desburocratizar, estudei os caminhos dos papéis. Na verdade, os caminhos
desde a ideia à avaliação, passando pelo consenso na programação, alocamento de
recursos, preparação, contratações, realização, pagamentos... Criamos e
implantamos ali uma metodologia que chamei de Sistema Sesc de Produção.
Processos e procedimentos se simplificaram e,
com o tempo, natural e espontaneamente outras unidades operacionais do Sesc Rio
adotaram a metodologia. Nela, o IBAS – Informações BÁSicas – que nomeei em
homenagem a Betinho, do IBASE, continha respostas às 7 perguntas básicas
necessárias para a realização de eventos e atividades: o que, quando, porque,
como, onde, quem, quanto. Criamos e distribuímos muitos e muitas folhetos e
filipetas para os moradores da área, convites para frequentar o espaço.
Experimentamos, junto a funcionários, um outro método que chamei de Rodízio Criativo. E criamos e
implantamos as Redes Comunitárias,
adotada posteriormente pela instituição como um todo. Ampliamos a atuação para
fora do espaço físico do Sesc Ramos. Fomos até onde nosso público estava. Era o
Sesc fora do Sesc. Tudo isto estimulado pela missão original do Sesc:
“O bem-estar social
dos comerciários e seus dependentes, através de serviços de caráter
sócio-educativo nas áreas da Saúde, Cultura, Educação, Lazer e Esporte, com
qualidade e efetividade. Bem-estar social é aqui entendido como o resultado de
ações de uma estrutura de atividades e serviços de cunho educativo que
contribuem para a informação, capacitação e desenvolvimento de valores.
Os comerciários e seus
dependentes representam o público prioritário do SESC-RJ na prestação de seus
serviços, os quais são também extensivos à sociedade.”
Lembro que o Sesc faz parte do Sistema S
–Senac, Sesi, Senai, Sebrae, Sest, Senat, Senar... Do que entendi, o Sistema S trabalha com
dinheiro público e tem missões originais voltadas para o público, especialmente
trabalhadores e seus dependentes. Em relação ao Sesc, especificamente,
comerciários e seus dependentes podem frequentar gratuitamente suas
dependências e usufruir dos serviços que as unidades operacionais do Sesc
oferecem: eventos e atividades nas áreas de esporte, lazer, sócio-educativa,
turismo e saúde, como, por exemplo, assistência odontológica de boa qualidade.
Sou, porém profundamente agradecido à
instituição pela oportunidade de ali realizar trabalhos com o senso ético que
carrego em mim. Porém, não me identifico com a orientação definida pela direção
do Sesc Rio nos últimos tempos em que lá trabalhei, em 2011.
Vídeos
Já na sede, no Flamengo, na Assessoria de
Projetos Comunitários supervisionada por Gilberto Fugimoto, planejamos e
realizamos diversas ações comunitárias, enormes e pequenas. Para difundir a
metodologia encomendamos e orientamos a realização do vídeo institucional Redes
Comunitárias.
Um tanto pela importância daquilo que
fazíamos, eu me propus realizar registros em vídeo, especialmente de encontros
de redes comunitárias. Comprei, com meus recursos, equipamentos – 2 conjuntos:
câmeras, tripés, microfones direcionais, extensões... – e gravei. Gravei muito.
Já no momento das edições, solicitei e recebi o apoio do Sesc, que pagou o
trabalho de editores. Em contrapartida inclui nos créditos agradecimentos e autorizei
copiagens para distribuição junto a pessoas e instituições interessadas na
metodologia. A partir do movimento de
cada um que se identificou – vivenciou e tomou conhecimento do novo jeito de se
encontrar e objetivar conversas – as redes se ampliaram e se ampliam.
No Sesc criamos outros encontros. O METS –
Movimentos Emocional e Transformações Sociais, com Michel Robin, nos espaços do
Centro de Movimento Deborah Colker – encontro-pesquisa em busca de informações
sobre mudanças individuais e coletivas. O LPS – Livre Pensar Social, com
Gilberto Fugimoto – roda de conversa entre instituições interessantes e
interessadas no bem estar social. O CCI – Comunicação Comunitária Interativa –
roda de conversa entre pessoas atuantes em comunicações comunitárias, com a
participação de George de Araújo.
Os vídeos que realizei com o apoio do Sesc Rio estão disponíveis para
que a instituição utilize em benefício do público. Estão acessíveis no www.luizsarmento.blogspot.com e no www.videolog.tv/luizfernandosarmento. Disponibilizamos também pouco mais de 500 classificados sociais, um a um,
no http://www.youtube.com/redescomunitarias.
Tudo um tanto singelo.
Relações humanas
incluem relações emocionais. O que me leva ou o que me impede relacionar
com outro? Os METS foram
encontros periódicos, às vezes esporádicos, que procuravam congregar quem
considera desenvolvimento emocional como
base para desenvolvimento humano e
social. Demos um tempo nos METS quando conhecemos as TCs – Terapias
Comunitárias, criadas por Adalberto de Paula Barreto. Nas TCs, teoria, metodologia e prática somam conhecimentos acadêmicos e populares.
A TC é política pública no Brasil, hoje. Saiba + no www.abratecom.org.br, no www.luizsarmento.blogspot.com ou no www.videolog.tv/luizfernandosarmento
Os LPS
– Livre Pensar Social – eram encontros voltados para reflexões e fomento de
políticas públicas. Articuladores, apoiadores e realizadores de projetos
comunitários – sem compromisso
conclusivo ou deliberativo –
compartilham ideias, informações e reflexões focadas em desenvolvimento humano,
social, integral.
Antes, apoiado nas práticas por Lídia Nobre,
a assistente social, criamos as Redes Comunitárias, onde cada participante tem
espaço para falar do que oferece e do que procura em relação ao lugar que vive
ou ao tema que lhe interessa.
Pra mim, redes comunitárias cuidam do
objetivo. E terapia comunitária do subjetivo. Como tudo, ou quase, na vida,
varia.
A ideia das Agências de inFormação deu motivo para que George de Araújo e eu,
com apoio de Carolina Pelegrino e Andrea Medrado, realizássemos os CCI –
Comunicação Comunitária Interativa, encontros de pessoas e instituições ativas
e interessadas em levar e trazer informações para quem não é escutado e para quem
não é representado por mídias formais. É gente que trabalha com jornais,
rádios, TVs comunitários, folhetos, alto-falantes, comunicação popular. Gente
que leva e traz informações e notícias, interage com seu público. E que, nos
encontros, reflete sobre o que faz e comunica, conteúdo e forma.
Estes encontros muitas vezes foram sementes
que geraram vínculos, parcerias e movimentos. Tudo em ondas, frutos de
contribuições de cada um, de acordo com suas possibilidades e desejos.
Gravei em vídeo, com apoio de muitos, muitos
destes encontros. Cada editor – criação e muito suor – deu personalidade a cada
vídeo. Em sua maioria, os vídeos estão na internet.
Os
ouvintes querem falar:
todos
sabemos que há gente procurando e oferecendo de um tudo. Quando se encontram e
se entendem, se suprem. Quando não sabem um do outro, oportunidades
desaparecem.
Início
do milênio, Sesc Ramos, ao lado do Complexo do Alemão, Rio de Janeiro. Fórum
Transformações Sociais – O que Pode dar Certo. Palestrantes experientes numa
mesa, trezentas pessoas na platéia. Nem mesmo falas interessantes interessaram
aos presentes. Em menos de uma hora, evasão. Das trezentas, somente umas
cinquenta, sessenta ficaram.
Levamos
o microfone ao público. Agarram, botam pra fora: “o governo não presta...“. Muita gente na fila, todos querem falar.
Eu, inseguro: “Peraí! Seja objetivo por
favor: o que você veio procurar aqui? O que você veio oferecer? Dois minutos
para cada um.”.
Pronto,
surgiu o jeito, a metodologia. Convidamos quem se interessasse para uma
primeira conversa, juntos. Em roda, os tratos iniciais - aqui, neste momento,
somos iguais em direitos e deveres. Encontro sem palestra nem eventos, só as
falas individuais...
Cada
um sintetiza quem-é-o-que-faz, se-representa-uma-instituição, o que procura, o
que oferece. Tempo limitado, um-dois-cinco minutos, dependendo de quantos estão
presentes e do tempo total que pretendemos estar juntos naquele encontro.
É
um desafio sintetizar, falar pouco e objetivamente. Aprendemos juntos. Para
facilitar o controle dos tempos individuais, há encontros em que utilizamos uma
ampulheta, outros em que batemos palmas no limite ou simplesmente avisamos,
cordiais: tempo esgotado. Depois que
todos falam, os interessados se deslocam para o café. E, ao redor da mesa, cada
um aprofunda a conversa com aqueles por cuja oferta-procura se interessou.
Trocam informações, ideias, se conhecem. Constroem parcerias.
Base das
redes comunitárias, os encontros são voltados para a construção de realizações,
para a prática de parcerias, através de pessoas representativas – interessantes
e interessadas – de comunidades e instituições privadas, públicas e do terceiro
setor. De modo simples e objetivo, cada representante se apresenta e fala o que
veio procurar e o que veio oferecer. Todos têm oportunidade de falar e ouvir. E, quando cada um sabe quem é quem, o espaço
se abre para o aprofundamento de relações e formação de parcerias. Normalmente
os encontros acontecem periodicamente – mensalmente, por exemplo – no mesmo
local ou em espaços alternados. A metodologia naturalmente é adaptável a cada
realidade. O importante é que gere os frutos desejados e possíveis.
Permanecem como memória os classificados sociais e a
lista de participantes. Nos classificados, digitados posteriormente, cada um
descreve sinteticamente o que oferece, o que procura e dá seu nome, telefone,
email. Estes dados são posteriormente digitados e disponibilizados diretamente
para cada um – via email – e quando possível para o público em geral, também virtualmente
através da internet. Cópias xerocadas podem ser distribuídas para os
participantes de encontros posteriores. Estes classificados são cumulativos: a
cada encontro, novas ofertas e procuras, relativas a novos e antigos
interessados.
Rodízio
criativo:
imagine
uma instituição de porte médio: empresa, serviço público, ong... Em consenso
interno, trabalhadores de um setor liberam um ou mais do grupo, por um ou mais
dias, para visitarem-estagiarem em outros setores. Os que permanecem no setor
original cuidam do cumprimento do conjunto das suas obrigações normais. Esta a ideia
básica.
Parece ser bom para a instituição – e para o trabalhador e seu grupo –
que cada um tenha o olhar do todo, além de capacitação aliada ao seu próprio
desejo. E parece ser bom para cada trabalhador ter acesso a oportunidades que
facilitem acréscimos a seus conhecimentos pessoais e profissionais. A prática
tem ensinado o melhor caminho.
5
Agências de inFormações
Consciência
É mais fácil eu
compreender meus processos de transformações, quando reconheço e considero o
que vai pelo meu inconsciente. Meus atos falhos me dão sinais. E o que eu
compreendo em mim, talvez melhor compreenda no outro, nos outros. Reich, Freud,
Jung me ensinam que eu, no correr da vida, adquiro e internalizo defesas. Elas
têm a função de impedir incômodos, especialmente sentimentos.
Por outro lado, a
construção de relações de confiança facilita comunicações mais profundas.
Assim, antes de entrar propriamente nos conteúdos, é necessário cuidar de mim,
estabelecer aproximações comigo mesmo. E depois com o outro. Como no namoro: há
o olhar, a empatia, a delicadeza na aproximação, as identificações comuns, os
sinais, o pegar na mão, a construção da relação.
As inFormações
profundas somente chegam ao seu destino quando o destinatário está receptivo.
Comunicar é uma arte.
Agências
de inFormações
Retrato rápido: jornais pendurados nas bancas exibem quase sempre as
mesmas notícias, escritas de forma um pouco diferentes. As fontes de
informações, parece, são as mesmas. No Brasil, umas poucas agências de
notícias. Agências O Globo, Folha de São Paulo...?
Uma jovem conhecida, na primeira década do
século XXI, registrou que manchetes de grandes jornais de 27 cidades européias
exibiam, no mesmo dia, fotos semelhantes sobre a mesmo assunto. Também lá poucas
agências como fontes de informações. Reuters, UPI, France Presse, China Press...
Bom problema: como
podemos contribuir para chegar a nós, à população, informações diversificadas e
com qualidade de conteúdo?
É possível a realização de uma ou mais agências
de inFormações independentes. Porém,
estas novas fontes só fazem sentido se os conteúdos das inFormações a serem oferecidos contribuírem para o bem-estar –
individual e coletivo – de quem as produza e de quem as receba.
De outro lado,
observa-se,
tudo potencialmente conspira a favor:
conteúdos, público, veículos, financiadores, apoiadores. Há conteúdos de
qualidade ainda invisíveis para a maioria da população. Há veículos
potencialmente interessados em difundir estas inFormações. Há públicos potencialmente interessados nestes
conteúdos. Há instituições potencialmente apoiadoras e/ou financiadoras de agências de inFormações voltadas para o bem-estar coletivo. Há pessoas e instituições animadas, interessadas
em fazer circular estas informações. Como integrar estes conteúdos,
veículos, públicos, apoiadores-financiadores, pessoas-instituições animadas?
A ideia é simples
Uma agência, inicialmente com inFormações atemporais. Uma pessoa, um
espaço, que pode ser residencial ou institucional. Um computador, telefone,
scanner, fax, internet, softwares que facilitem acessos a veículos de
comunicação.
Havia no mercado – há ainda? – empresas
especializadas que oferecem softwares
e dados atualizados sobre veículos de comunicação de todo o Brasil – rádios,
jornais, TV, revistas... Informam seus endereços físicos e virtuais, telefones,
emails, nome de editores de áreas específicas e mais. Assessorias de Imprensa
utilizam estes serviços, talvez saibam melhor de quem fornece dados e softwares. Como exemplos, a confirmar, o
Comunique-se http://www.comunique-se.com.br , o Meio &
Mensagem www.meioemensagem.com.br
Esta pessoa que se propõe ser um agente de inFormações: contata e articula
produtores de informações atemporais, constrói um baú virtual de textos
disponibilizáveis, contata e articula editores e colunistas de veículos de comunicação
em todo o país, oferece os textos do baú. Assim, trata e se relaciona com um
conjunto de veículos que disponibilizam para seus leitores as informações
originais que esta pessoa cuidou de produzir.
Se há interação com os leitores, novas informações
chegam às agências, realimentando o processo, dinâmico. Vão e vêm informações.
Esta pessoa: ao aprender-fazendo, testa e recria-adapta
à sua realidade uma metodologia singela que poderá ser compartilhada com
instituições e pessoas ativas, interessadas em montar suas próprias agências
para fomentar a difusão – através de veículos de comunicação já existentes – de
inFormações específicas atemporais.
Na prática, o que agências de inFormações
poderão oferecer: no mínimo, artigos e contribuições para pautas de veículos de
comunicação já ativos.
Imagine agências independentes de inFormações focadas em conhecimentos de
interesse público. Inumeráveis. Só de pensar o que me interessa – e, acredito,
também a muitos – sonho de estalo
agências voltadas para educação, saúde, agronomia, alimentação... Ou
específicas para pais, para crianças, escolas... E para
psicologia-psiquiatria-psicanálise, para oferta e procura de trabalhos,
esportes, teatro, brincadeiras, voluntariado, solidariedade... Podem ser inFormações específicas. Ou gerais...
Imagino um mundo com inFormações variadas, de fontes diversas... que eu tenha prazer em
saber e compartilhar com meus filhos, vizinhos, amigos, com o mundo ao meu
alcance.
Vejo
os jornais
e me angustio com a constante escolha do Estado-polícia pela
atuação mortal ao invés de utilizar inteligência e afeto. E me pergunto: que
atuações benéficas estão ao meu alcance?
Ao meu alcance está cuidar de mim e das minhas relações com
quem convivo: filhos, amigos, vizinhos, colegas de trabalho. Escutar um e outro
que procuram por escuta, me colocar no lugar do outro, seja próximo ou
passante.
Cuidar de mim significa também
mudar para o melhor programa, fugir da fofoca, escolher meus pensamentos.
Lembro Wittgenstein, de quem penso que sei só isto: o pensamento é a linguagem.
6
vários eu
Sinto
um pedaço do mundo
Outra noite encontrei uma moça a chorar de
dor. Está com medo de caminhar sozinha. Relata que alguém tapou sua boca,
tentou estuprá-la. Ao reagir, levou um paralelepípedo na cabeça, dói e dói.
Quer ir ao pronto-socorro, quer fazer queixa à polícia. Não sabe escrever nem
ler. Caminhamos de quase Parque Guinle até o Largo do Machado. Só consegui
escutar e oferecer o da condução. Inda nervosa, inda com medo, toma o ônibus
pro hospital. Um tanto de sua tristeza e impotência ficam comigo. Negra, pobre,
gorda, catarro e tosse, lágrimas, tristeza, raiva e rua como residência.
Relembro pra não me esquecer
Aquela de Adalberto de Paula Barreto: que você quer que eu queira preu querer?
Toda vez que me lembro dela, lembro de meus momentos de submissão. Hoje sei que
é uma pergunta que só devo fazer ao espelho.
Do que entendi de Freud, sonho com o desejo
realizado. Em Interpretação dos Sonhos,
ele fala de que, quando à noite come azeitonas ou algo salgado, vem sede
durante o sono e tende a sonhar tomando algo que supra a sede que de fato sente.
Quando acorda, acorda com sede.
Mas sonha suprindo a sede, realizando o
desejo.
A comunicação se dá quando o outro entende o que falo. Alguém já disse algo como a comunicação se dá quando o outro entende.
As coisas me têm, mesmo que eu tenha as coisas. Se tenho um carro, um trabalho para mantê-lo. Se dois, mais trabalho. Se tenho um computador, devo limpá-lo, espaná-lo. Ou trabalho eu ou quem eu trate para trabalhar por mim.
Ah, se eliminássemos os controles do mundo, quanto trabalho a menos, quantos recursos liberados. Talvez, lá no fundo, os medos sejam as origens dos controles.
Aqui
escolhas constantes
entre prazer e dor. Treino esboço de sorriso,
arrisco o palco que desejo. Tropeço, volto pro espelho, reclamo de mim mesmo.
Como num bolero, dois pra frente, um pra trás.
Não me lembro quem me lembra: seja o mundo que você quer.
Outros eus
No viver minha vida, construo minha visão de
mundo, que se transforma de acordo com o que vivencio.
Tem gente que sente que o mundo lhe deve.
Acumula. Tem gente que sente que deve ao mundo. Se sacrifica. Tem gente que o
mundo e o eu são um só. Compartilha com o outro que é eu. Ora é um, ora é
outro. Como eu, ora sou um, ora outros.
Outra noite – que outro dia foi ontem – ainda incomodado com um documentário
sobre a repressão de 40 anos de ditadura na Albânia, olhei no espelho. Eu tinha
18 anos quando militares tomaram o poder em 64. E 39 quando houve novamente
eleições, mesmo que indiretas. Nestes 21 anos de minha juventude aprendi o medo
de me expressar livremente. A quase paranóia, descubro chateado, volta à tona
volta e meia. Tanta coisa pra desaprender...
Olho pra trás, pra antes de mim e, um tanto
inseguro, confirmo que o homem que domina outro homem está presente no decorrer
dos tempos. Dominador e dominado se complementam, talvez co-responsáveis pela
situação. Um age como se o mundo lhe devesse um tanto... e toma do outro como
se fosse seu. Outro se submete, como sem saber do que é capaz.
Na tentativa de olhar com o olhar do outro –
daquele para quem o outro não tem valor – a associação que faço, imediata, é de
que algo lhe foi tirado. Se na
infância ele viveu em si, incompreendida, uma falta, ele quer agora isto e
aquilo e mais. Aquela falta gerou uma necessidade constante de ser tapada, como
se fosse um buraco “agora dentro de mim”.
Sem consciência da falta original, consome a vida em busca de poder, objetos e
afins. Arrisco: se desmamado de repente, fica um vazio incompreendido?
A mesma falta afetou os afetos. Agora, uma
busca constante de afetos perdidos, de reconhecimento. Não só isto, mas um
tanto.
Já o oprimido aprendeu desde cedo que não tem
valor. Relembro Groucho Marx – clube que
me aceita como sócio, não entro. Quem o aceita, não serve. Tão
desvalorizado diante de si mesmo, como respeitar a quem o valoriza?
Ao contrário, parece que o complexo de
inferioridade esconde o de superioridade. Ah,
você pensa que sou fraquinho? Você não sabe como sou forte. Você vai ver! Me
engano que gosto.
Reconheço este homem – um e outro – a partir
do que me conheço. Antes desvalorizado ante mim mesmo, descubro pouco a pouco
meus valores. Tanta vida aprendendo o que agora procuro desaprender. Tantas
faltas sem sentido agora se esclarecem, mesmo difusas. A alegria fica mais
próxima, o poder menos necessário, objetos também. E estes menos dão menos
trabalho, libertam-me.
Mas dói quando vejo recursos empregados pra suprir
reconhecimentos e faltas, pra mostrar poderes que nem são.
Pedaço
de conversa
de rua, duas mulheres que passam: “...não viveu a vida, morreu cedo. Todo mundo
se ajeitou.”
Civilização? Quanto tempo os vikings
demoraram pra se transformar em suecos?
Mudanças de comportamento, do que tenho aprendido, mais se dão com o passar de anos. Às vezes na mesma geração, às vezes não.
Ferenczi pra Freud. Freud pra Ferenczi,
correspondências. Papo reto, direto. Atos falhos expostos. Tudo com delicadeza.
A dureza do dito agora espanta, em seguida aproxima. Auto-análises, exposições
do confuso, da dúvida.
Ferenczi ama a mulher mais velha.
Compartilham interesses intelectuais. Ela é quase completa, só lhe falta
juventude. Ferenczi analisa a filha da mulher que ama, contra-transfere, se
apaixona. Pede ajuda, Freud analisa a moça. Os 4 sabem do triângulo familiar.
Ferenczi dá razão à razão, transpõe a emoção. Amizades se constroem. A
psicanálise se refina.
Fofoca. Esta ouvi do Dr. Fritz, em transe: João falou
pro Pedro: quero lhe contar o que aconteceu com Joaquim. Pedro perguntou: o que
você vai me contar, é bom pro Joaquim? E João: não. Pedro continua: e pra você?
João: não. Pedro, de novo: e pra mim? João: não, não é bom pra você também.
Pedro arremata: então não me conte não.
De Agnès Jaoui, que exerce múltiplas funções,
em matéria d’O Globo: Ser atriz e cantora
é como ser criança, a gente brinca. Escrever é como ser adulto. E dirigir é
como ser um pai ou uma mãe, você tem que prestar atenção a todo mundo. São
profissões diferentes, por isso amo todas.
7
Lembranças
Escrevo
para lembrar:
olha eu aqui, existo. Também para me
entender, a mim, a outros, ao mundo. Quero ser reconhecido, amado. Tenho medo
do que não compreendo. O que não compreendo, no início, é difuso, confuso. Não
enxergo um palmo diante do nariz. Sinto que viver é perigoso, mas não viver
parece ser mais. Quando apalpo, ando, chego mais perto, a vista se acostuma à
névoa, o mistério vai clareando, a compreensão substitui o medo, alguma ordem
se segue ao caos.
O tempo passa, a memória me trai,
multiplicam-se os mistérios. Sessenta e um anos e permanecem marcas infantis,
desejos juvenis, dúvidas anteriores a mim. Tem coisas que sinto que sei. Um
tanto aprendi do que vivi. Outros tantos do que li, ouvi, encostei, cheirei,
provei.
Agora a memória mais remota é porta de rua,
gente grande conversando, eu com dois, três anos. Ficaram histórias de almas de
outro mundo, mulas sem cabeça, uma foto de uma morta num caixão. No berço,
sombras. Os olhos fechados pra fugir dos medos. Tão apertados que distorceram –
na segunda infância, sem enxergar direito, fui Luiz Ceguim.
Eu era pobre e não sabia. Não havia o que
comparar, felicidade e infelicidade eram desconhecidas. Não havia rádio, telefone,
televisão, internet, luz elétrica. Calorão tropical. Farinha na cuia pros que
pediam esmola à porta. Água do pote pra beber. Chão de espécie de tijolo.
Arroz, feijão, farinha, rapadura, carne seca. Gamela, pilão. Banana, melancia,
manga. Café torrado, fogão a lenha. Banho frio na bacia, toalha de saco. Roupa
lavada no rio. Praça com cruzeiro, esquina de rua que leva ao cemitério, mortos
que passam carregados em
seus caixões. O vizinho que estudou muito e ficou doido. A
tia mocetona, presa no quarto, canta sertaneja
se eu pudesse, se papai do céu me desse duas asas pra voar...
Hoje sinto que era rico e não sabia. Não
sabia se eu era pobre ou era rico. Nem sabia o que era ser rico ou ser pobre.
Daquele tempo ficou em mim, forte, a memória afetiva. Já os fatos, como névoas.
Mamãe
chegou a Salinas pra dar aulas,
aos quinze anos. Papai já estava lá, amado e
mimado pelo pai adotivo. Cheguei quando meu irmão e duas irmãs já tinham
nascido. Mamãe aos vinte e sete, quando se percebeu grávida de mim, imagino o
sentimento imediato: ah, não! Talvez só minha imaginação, não ter sido
desejado no primeiro momento.
Soube por mamãe que, aos 29, cuidou cuidar da
própria vida. Um filho em cada casa de amigo, o mais velho com ela, foi se
capacitar em Belorizonte. Isso facilitou a nossa mudança, dois anos depois,
para Montes Claros, onde mamãe estava em casa, próxima a muitos dos seus
catorze irmãos, parentes e amigos de infância.
De Salinas minha memória traz os cheiros, os
sons, o sol, uns medos, uns deslumbramentos. Imagens das pernas de presos pra
fora das janelas da cela, um clima de festa na feira dos sábados – bruacas,
animais, sacos de grãos e farinhas, gente, muita gente. Eu num vai e vem,
movimento no movimento. Panelas, boizinhos e cavalinhos de barro, colheres de
pau, biscoito, requeijão, pão de queijo, tacho de cobre. Um bocado de
mistérios.
Já em Montes Claros, medo mesmo tive no
catecismo. Aquele inferno que nunca acaba, chamas eternas, pavores. E as
dúvidas do que era pecado mortal, venial. Quaresma, panos roxos cobrem os
santos, carne nenhuma à mesa. Os olhares tristes das imagens, os ferimentos de
cristo. Os dez mandamentos, os sete pecados capitais. A proibição do ócio, do
sexo, da raiva, da alegria, das expressões de emoções. Eu era pecador e não
sabia. Antes eventualmente sofria, agora o sofrimento estava dentro de mim,
constante.
À crueldade dos adultos se somou a das
crianças. Mamãe definiu: brigou na rua,
apanha em casa. Inseguro, provocado, tirava os óculos, fechava os olhos,
dobrava o corpo e dava murros às cegas. Apanhava na rua, apanhava em casa. Até
hoje não sei brigar.
Mas brincava de roda, pegador, seu rei mandou
dizer. Ouvia serenatas, me lambuzava de manga, pipoca era uma festa. O cheiro
que a chuva provoca na terra, finca, bilboquê, luta de espadas, papagaio na
linha, pé no chão. Latim, matemática, desenho, trabalhos manuais, português,
geografia, religião, história. Um pouco de francês, inglês, coral. Recreio,
trabalho na cantina. Férias. São João, passeios no mato, banho de rio. Tarzan,
Mandrake, Fantasma, Cavaleiro Negro, Zorro. Matinê, seriado, Rock Lane, Roy
Rogers, Kung Fu. A boiada passando na porta de casa. Os compromissos escolares,
as obrigações caseiras – comprar o pão, engraxar sapatos, passar cera no
assoalho, arrumar a cama, levar e trazer o que for preciso, eventualmente
buscar marmita. E olhares afetuosos de quem gostava de si. E de mim.
Permaneço
criança,
fantasiado de adulto. Sinto hoje minha
criança presente em tudo o que sou e faço. Amadurecendo, aprendo agora gostar
de mim. Reconheço – recordo que fiz o melhor que soube, que pude em quase, se
não todos, momentos da minha vida.
Depois, horas dançantes, desejos fortes. Os
apertos de mãos, o bate-coxas, os rostos colados, os beijos de língua, as mãos
nos peitos. A iniciação no bequinho dos meninos, o risco, o frisson, o gozo rápido. Sempre presente,
proibido – um tanto fora, um tanto dentro de mim – o sexo.
Aos doze, para ganhar um pouco, vendi cestas
de natal. Que alegria um dinheirinho fruto do meu trabalho. Depois, lá pelos
catorze, aulas de matemática pro filho do representante da Brahma na região,
que me contratou depois como auxiliar administrativo. Fiz o segundo científico
em Belorizonte, o primeiro e terceiro em Montes Claros. Vestibular
– não passei em BH – escolhi, mesmo sem saber o que era, economia e lá fui eu
pra Brasília. Dei aulas de matemática à noite no Gama, fui monitor de
estatística na UnB, estagiário no Ministério da Agricultura, Socorro foi meu
amor e com razão me deixou. Sai de dois serviços públicos, errei como pequeno
industrial de malhas. Arrisquei o Rio.
Início
dos anos setenta
Conjugado dividido em Copa, um karman-ghia, paquera aleatória diária,
sexo como objetivo. Culpas misturadas com prazeres. Trabalho no Instituto de
Colonização e Reforma Agrária, o Incra, aqui
responsável pela coordenação do treinamento e seleção de quem cuidaria
de fazer os levantamentos de dados em campo.
O combinado era uma passiva reforma agrária,
através da taxação progressiva tanto das propriedades menores, os minifúndios,
quanto das propriedades maiores, os latifúndios. Maiores ou menores em relação
à área definida em cada microrregião como a suficiente para a sobrevivência e
desenvolvimento econômico de uma família trabalhadora. Levantamento feito, memória
difusa, quem detinha o poder de assinar, decidir optou pela proteção aos
latifúndios.
Larguei mais este serviço público, vendi o
carro – já um fusca – e, com Ana, pegamos o navio em direção incerta, hippies sem saber que éramos. Uma semana
em Barcelona, dez dias em Andorra acolhidos por um índio peruano, um frio
danado, atravessamos a Europa batendo a mão, carona pura até Amsterdam. Lá,
centro da cidade, na redlight,
mulheres na vitrine, encontramos um quarto bom, ambiente aquecido, chuveiro
externo quentão, baratinho. Ana foi posar na escola de desenho e pintura, eu
aprender a bater perna.
O Kosmos,
um choque. Centro cultural para jovens holandeses, financiado pelo governo,
duas moedas pra entrar, de cara um salão grande, alguma fumaça com cheiro bom
como os dos bolos e tortas, música suave, pessoas calmas espalhadas. Outra
porta, um forno elétrico, barro à vontade para quem quisesse esculpir e levar.
Depois um salão, cubos grandes em muitos níveis, espaço para apresentações de
artistas passantes, asiáticos, europeus, africanos, latinos, americanos, de
outros mundos. Desço escada, uma cozinha com aquelas comidas estranhas,
cheirosas, leves, caseiras, que depois descobri macrobióticas e naturais. Sauna
grandona, homens e mulheres conversam e agem como se não estivessem nus. Tudo
muito paraíso. Noutro lugar, à noite, o Paradiso.
Coca e maconha oferecidos na calçada, música a mais moderna adentro. Corri da
coca, medroso de me apaixonar. Aos meus olhos tudo muito leve, tudo muito puro.
Alegria quase insuportável. Assim as portas se me abriram para outras janelas.
Antes,
em Brasília,
vislumbre de nova vida. 1965, dezoito anos,
meus tempos e afazeres por minha conta. Duzentos e trinta professores
demitidos, greve boa parte do ano na universidade. Estudos intercalados com
aventuras. A população masculina predominava. Zona boêmia, rendez-vous só fora do distrito federal. Pegava carona, lá ia eu
mendigar por amor, carinho, consideração. Bati errante, errado em portas erradas.
Madrugadas frias, solidão.
Também por carência - necessidade de estar
próximo a colegas, de ser aceito - perdi no baralho muito de minhas mesadas. Já
no segundo ano, monitor de estatística na universidade, estagiário de economia
no Ministério da Agricultura, professor de matemática para o ginasial de escola
da Fundação Educacional do Distrito Federal. Em 66 já tinha um fusquinha. Em 67
completei rapidinho todas as matérias do currículo de Economia, fiz outras de
Administração Pública enquanto esperava o tempo mínimo para me diplomar.
Muito jovem aprendi a ser bonzinho. Pra não
apanhar, literal e simbolicamente. Como uma defesa diante do mundo. Meu humor
era leve, brincava fácil. Cedo percebi que podia escolher meus rumos. Era só me
responsabilizar pelos resultados do que fazia.
Atenção redobrada ao que acontecia fora e
dentro de mim, ao que era real e ao imaginado. Medos antecedendo às decisões.
Culpas depois das ações. A cada fugida da regra, da normalidade, medos e culpas
e reflexões.
Erro e acerto, tateando atento, emimesmado. A
regra de ouro presente: não fazer a outro o que não desejo pra mim. Como
auto-referência, meu humor. Se bem-humorado, vale, valeu. Se mal, o que está ao
meu alcance?
Adulto
jovem
descobri que quando alguém me diz não! devo rapidim verificar se este não é de quem diz ou é meu. Volta e meia
querem cortar meu cabelo, mudar meu jeito, trocar minha camisa, que eu construa
uma pirâmide. Normalmente é problema de quem tem problema com seu próprio
cabelo, seu jeito, camisa. E de quem complica sua vida construindo as pirâmides
que inventa.
Agora mesmo agradeço
oportunidade de me candidatar a recursos para realizar documentário que quero.
O assunto, terapia comunitária, me interessa profundamente. Mas me angustiam
prazos, prestações formais de contas, limitações externas de conteúdos. Acordei
já com o estômago contraído. Decido pelo que desejo e está ao meu próprio
alcance, com meus recursos e tempos. Imediatamente meu corpo relaxa, meus
pensamentos se aquietam, me acalmo.
Nada a ver, tudo a ver, uma quase dúvida:
juventude é estado de espírito? E velhice?
Amsterdam
se foi inesperadamente
A morte da mãe de Ana nos trouxe de volta.
Fomos até Cádiz, atravessamos o estreito de Gibraltar, Marrocos. Meu rabo de
cavalo agora em coque, receio não ser aceito cabeludo em cultura estranha. Tetuan ,
o ônibus tosco pega e deixa pelo caminho gente, carga e animais. Punhais saem
de djelabs para descascar frutas,
cortar nacos de carne. Camelos passam ao largo. Aos trancos, Marrakesh.
No Zoco, mercado central, montes de
castanhas, aquela música serpenteante vinte e quatro horas por dia. Gente que
conversa pegando na gente. Um que passa com duas luvas de boxe à procura de
contendores que apostem no seu próprio taco. Às tardinhas, o mesmo personagem –
agachado como seus espectadores – conta histórias como novelas.
Um menino me puxa e oferece atento a tudo – kif, kif,
cinq dirrans! Compro aquela mão cheia
de maconha - haxixe? - vou esgueirando pra pensão, aperto um baseado com alguns
desconhecidos aventureiros espanhóis, fica tudo escuro de repente, perco a
visão por catorze horas. Badtrip.
Talvez decorrência daquele ácido potente que tomei inocente no banheiro em
Amsterdam, alguns dias atrás – fiquei então seis horas em orgasmo contínuo, e
outras tantas em puro terror, a zanzar pelas ruas e canais da cidade estranha.
Na África a visão voltou, meus medos me
fizeram limitar-me ao botequim frequentado por europeus errantes como eu.
Enquanto Ana, como se estivesse em casa, já com vestimenta local, andava pelos
becos a descobrir de um tudo da cidade e sua gente. Só Jung pra explicar esta
memória ancestral de Ana, nascida Aben-Athar.
Pegamos
o destino errado, na volta
Só homens no vagão, o chefe de trem sacou o
perigo e nos acomodou numa cabine isolada. Passada a noite em nebulosa direção,
retomamos não sei como o caminho para Casablanca. Dali, Espanha, Portugal ainda
salazariano, avião pro Brasil de Médici. Ou Geisel.
No Rio, busca de uma nova rotina,
burocracias. Nos meses que antecederam a ida pra Europa morávamos sete numa
casa, comunidade urbana criada por nós – Ana, Paulo Cangussú e eu. Inicialmente
três, colocamos anúncio em jornal, talvez Pasquim ou JB, e acolhemos quatro
desconhecidos. Era tanto movimento que volta e meia dormíamos fora, em busca de
sossego.
Uma vez, em Ipanema, na praia, quando
acordamos, Paulo, primo amigo comunitário original, deu por falta dos óculos.
Procura dali e daqui, rastros de ratos nos levaram aos seus buracos. As lentes
continham celulose, apetitosa pros roedores. Foram-se os óculos.
Outra vez abri a parte de cima do armário do
meu quarto e, lá, numa sacola das Casas da Banha, daquela de papel, maconha até
o tampo. Surpresa que explicou tamanho entra e sai de gente estranha. Talvez
ali a gota d’água pra dissolver a casa e a comunidade.
1973
Alugamos com Roberto Amaral um sala e quarto
na Barra. Prédio com cento e quarenta e quatro pequenos apartamentos, só nós
morando durante a semana. Água potável trazíamos de fora. Em busca de glória,
dinheiro e de não sei mais de que, catálogo telefônico nas mãos, ofereci de
porta em porta meu trabalho gratuito a produtoras de cinema. Memória insegura.
Um concunhado que era filho de uma prima de
Lucy, mulher de Luiz Carlos Barreto, entreabriu uma fresta. Barreto me acolheu,
me deixou à vontade. Durante três meses cheguei cedinho, sai noitinha, mexendo,
escutando, atento. Especialmente a partir de informações de Lucy, escrevi um
manual de produção de cinema, com tudo quanto é tarefa e controle. Frilança,
fiz uma secretaria de produção d’A
Estrela Sobe, de Bruno. Nelson Pereira dos Santos, talvez não se lembre,
sem me conhecer, me marcou pela atenção com afeto. A produtora era um centro
cultural, vaivém de gente diferente.
Dali fui segundo assistente de montagem de
Escorel e Amaury no Guerra Conjugal,
de Joaquim Pedro. Na Mapa de Zelito, na Urca, rolava no final das tardes uma
comida caseira deliciosa e à mesa sentavam os chamados senadores do cinema novo
– Cacá, Leon, Jabor, além de Joaquim, Nelson, Zelito, e, olha a memória curta,
talvez Glauber. Ali, acredito, o berço da Embrafilme.
No Largo do Machado encontrei Carlos Alberto
Prates Correia. Carlos Alberto, minha referência amiga mais forte no cinema, me
ensinou ser diretor de produção de seu filme Perdida, que arrebanhou em Gramado a maioria dos kikitos daquele ano. E, na história da
Embrafilme, único filme a devolver dinheiro não gasto do financiamento.
1976
De novo, navio mais barato que avião, doze
dias no mar, Europa. Londres, rapidinho encontramos o porão certo da casa
condenada. North Gower Street,
pertinho da Union London University,
a ULU, onde – para nosso fraco inglês não nos denunciar intrusos – calados
entrávamos, calados almoçávamos e tomávamos banho.
Na casa comunitária da esquina da nossa rua
ajudávamos fazer pães integrais. Ana trazia doces indianos deliciosos do
restaurante onde trabalhava na cozinha. Eu, não sei como – imagino fazia
mímicas – arrumava trabalho por telefone. Pulei de operário ajudante de obra
para modelo de escola de desenho. Depois lanterninha e vendedor de sorvete no
teatro da ULU. Lia as poesias de Mao em português, comia kebab, batia perna pelo centro da cidade.
Desconfiei serem agentes do DOPS os
fotógrafos que clicavam em passeata de protesto contra Geisel, em visita
oficial a Londres. Medroso de não poder voltar ao Brasil, arrumamos rapidinho
as malas e, seis meses após nossa chegada, voltamos de avião para casa.
Não sei agora a ordem das coisas. Na
fronteira de Santa Tereza com o Silvestre, a Equitativa tinha um quê de paraíso
– a floresta da Tijuca à janela, gente em busca alternativa como nós, aluguel
barato de um apartamento velho por restaurar, uma pracinha com vista de cartão
postal da baia da Guanabara.
8
Psi
Wilhelm
Reich foi um choque
Almir, jornalista agitado, apresentou o Combate Sexual da Juventude, escrito na
década de trinta para jovens alemães. Pela primeira vez, uma orientação sexual
não moralista. Eu trazia em mim as culpas do catecismo, reforçadas pela leitura
do limitado Vida Sexual de Solteiros e
Casados, de João Mohana, padre e médico. Que experiências teriam homens com
voto de castidade para dar orientações sexuais a inocentes crédulos?
Mergulhei, fui fundo em Reich, li A Função do Orgasmo, Revolução Sexual,
Psicologia de Massas do Fascismo, Irrupção da Moral Sexual Repressiva, Escuta
Zé Ninguém, Casamento Indissolúvel ou Relação Sexual Duradoura, Análise do
Caráter. Para sentir, só me restava viver. O pecado seria não experimentar.
A regra de ouro permanecia: não faço a outros o que não desejo que façam a mim.
Romel Alves Costa, psiquiatra, também tinha
sido tocado por Reich. Experimentou técnicas terapêuticas com um colega, deixou
o emprego no INSS, abriu espaço e colocou anúncio-tijolinho no Jornal do
Brasil.
Lá fui eu, por cinco anos, muitas vezes por
semana, hora marcada, nu de corpo e alma, me emocionar, tentar me sentir e me
entender. Respiração e movimentos, atento. Volta e meia formigamentos. Se os
suportava, vinham reflexos. Com os reflexos afloravam sensações, sentimentos,
pensamentos. A memória fazia presente o passado. Fichas caiam, compreendia
dentro de mim, insights bem vindos.
Movimentos de braços, pernas, pélvis, olhos... Em meu corpo, minha memória,
minha história.
Na
penumbra,
seguia com os olhos a luzinha manuseada pelo
terapeuta. De repente, tantas vezes, lapsos. Quando dava por mim, estava em
posição fetal, com lembranças remotas de infância. Eu no berço, antes dos dois
anos, os olhos muito apertados, um jeito de fugir daquele medo que as sombras
me traziam. Medo de almas de outro mundo, mulas sem cabeça, defuntos.
Descobri ali no consultório de Romel a origem
de minha visão distorcida. De tanto apertar os olhos, acredito ter forçado a
musculatura local a ponto de perder a elasticidade. Com os exercícios, pouco a
pouco recuperei esta mobilidade muscular. A lente direita de meus óculos
diminuiu de quatro graus e meio para zero vírgula setenta e cinco. Depois de
usar óculos por vinte e sete anos, passei três anos de cara limpa, enxergando
tudo, suficientemente bem. Ao mesmo tempo, medos presentes, antigos e novos.
Passado um tempo, não suportei nem os medos
nem as alegrias. Voltei a usar óculos, mas perdi outra inocência: sou
responsável por mim mesmo. Reclamo primeiro ao espelho.
Na
Equitativa conheci Ralph Viana
A Rádice
já estava no sexto ou sétimo número. Era uma revista de psicologia com
visão ampla. Trazia da Inglaterra a antipsiquiatria de Laing, da Itália o
movimento antimanicomial de Basaglia, apresentava Nise da Silveira e seu Museu
de Imagens do Inconsciente, abria espaço para os argentinos, para a
latinoamérica, pro universo psi mundial. Além de Freud, Jung, Reich, Lowen,
Alex Polari, outros visionários chegavam a quem abrisse suas páginas.
Meu coração se juntou às ondas. Me ajudei,
ajudando. Resumos de livros, administração, distribuição, divulgação, próximo
de quase tudo. Imagino: mesmo quem não foi saberá como eram maravilhosas as
festas de Ralph quando se recordar das suas próprias melhores lembranças.
Guerrilha cultural, jornais e revistas nasciam, cumpriam sua missão, eram
colecionadas lá dentro de quem lia. A Teoria
Crítica mergulhava mais fundo. O Luta
& Prazer era leve. O Espaço Psi,
o Nexos, o Estar Bem, o Bem-estar...,
como todos jornais, eram distribuídos gratuitamente.
E os simpósios? O Alternativas no Espaço
Psi – Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise, cento e doze eventos em três
ou quatro dias intensos. Em vários espaços, ao mesmo tempo, palestras, debates,
vivências, intercalado com festas, recreios, namoros. Clima fraterno,
solidário. Com zero ou quase de dinheiro, uma multiplicação de ajuntamentos do
que cada um co-laborava. Valéria Pereira, Ralph, eu – e muita gente, Sérgio,
Dau Bastos, Viola, quem mais? – interagíamos
com os voluntários.
Mas não éramos sós. Tarefas relacionadas, um
a um definia o que se propunha realizar e em que prazo. Exercício
de autonomia integrada. Rede sem sabermos que era rede. Parque Laje, eventos
diferentes a cada duas horas em cada um dos oito espaços. Quem entrava se
dirigia para o que escolhia. Foram, na verdade, mil e cem simpósios, um para
cada uma das mil e cem pessoas presentes.
Os conteúdos, os jeitos de fazer se
espalharam pelos brasis, adaptados às realidades locais. Hoje teses acadêmicas
recuperam memórias, sopram novos movimentos libertários.
9
rotina
Escrevo
para me confortar,
gostar de mim, alegrar com o que vivo e com o
que vivi.
2011, até abril. Outro dia, quase rotina. O
primeiro toque do celular-despertador tem sido às seis. Depois, seis e meia,
seis e quarenta e cinco. Meia hora pra espreguiçar, obnubilado nesta névoa da
volta ao dia. Novo toque, se já não comecei, levanto as pernas pra cima,
permaneço um pouco em cada posição, me dobro até os pés encontrarem o espaço
atrás de minha cabeça.
Ao mesmo tempo, entreabertos olhos, circulo o
olhar exercitando a musculatura. Pernas pra cima de novo, depois, um pouco, me
aperto em posição fetal, equilibro um tantinho as pernas no ar e me curvo pra
frente, sentado, as mãos segurando os pés. Sento de novo, torço meu tórax prum
lado, pro outro. Repito tudo.
Levanto e faço a saudação ao sol, que Regina
me ensinou. Duas vezes, intercalada com balançares de braços como li em
Castañeda e como aprendi com Juracy Cançado. Rodo a cabeça, pra esquerda, pra
direita, como metaleiro em show. Antes, bem antes, em algum momento, quase
sempre, um e outro movimento bioenergético – bater pernas e braços como neném,
balançar meu corpo deitado como geleia, focar longe e perto... – daqueles que
vivi com Romel.
Sei que o terceiro toque do despertador
acontece quarenta e cinco minutos depois do primeiro. Tomo um banho, faço um
cafezinho, sento aqui por uma hora, uma e meia e me divirto em livre
associação, se não inteira, quase. Tenho gostado de viver. Em casa não tenho
remédios. Nenhum, me orgulho.
Almoço no Panela de Barro, comida leve,
saladas e algo de soja ou queijo, eventualmente um arroz, feijão. De vez em
quando um refresco de guaraná dito natural. E depois, descoberta, uma cocadinha
de Minas, feita com ameixa ou abóbora. O vício, uns cafezinhos de máquina
durante o dia, lá onde também trabalho todo dia útil, pela manhã e à tarde,
oito a dez horas.
2012, feiras às terças, às vezes aos sábados.
Faço arroz, feijão pra três, quatro dias. Bem simples, só água e fogo. Preparo
o almoço: na frigideira seca, terfal, um pouco de queijo curado, arroz, fogo
baixo, tampo. Pico algo como salsa, cebolinha, coentro. Boto em cima do arroz.
Do feijão já esquentado, pego um pouco sem caldo, acrescento. Corto o inhame ou
a batata baroa já cozida, coloco na frigideira. Tudo quente, viro de uma vez
num prato grande. Pronto meu almoço. Talvez uma couve esquentada na água. Com
certeza, na mesa, pimenta malagueta. É minha refeição principal, no meio do
dia.
Pela manhã, mamão, eventualmente junto com
banana ou abacate. Durante o dia, quando dá vontade, corto laranjas em quatro,
retiro a casca com as mãos, uma delícia.
O fazedor italiano – aquele sextavado que já
se tornou popular – me oferece café quente e novo umas três, quatro vezes ao
dia. Água, vario, tomo pouco, sinto que deveria tomar mais um tanto.
Lavo mas não passo. Mantenho mas não varro.
Molho as plantas. Cada dia tem sido novo dia. Gasto só o que tenho. Depois de
49 anos de trabalho, salve o INSS, sou um aposentado, digamos, ativo. Mais foco
no que sinto, no que penso, no que falo, no que faço. Aprendo atenção nos meus
sentimentos, pensamentos, palavras e gestos. Impressionante como volta e meia
me descubro colocando pedras em meu caminho. Tropeço, dou aquela corridinha que
o tropeço causa, às vezes caio. Aprendizado mais lento do que desejo. Mas,
confesso, nisto dependo só de mim. Reclamações? Vou pro espelho.
Leio. Mergulho quando me toco. Alguns livros
na cabeceira, minha mão vai instintivamente onde meu desejo da hora me leva.
Evito televisão. Só o necessário. Lembro Freud
quando ele afirma que a maioria dos sonhos tem a ver com o dia anterior. Cuido
de hoje pra ter bons sonhos.
Ah! E toma de tomar banho. Alterno frio e
quente. Pouco sabão. Nos cabelos, neca de xampu e condicionador, só água. Nada
radical, como com a comida. Em Roma, como os romanos. Quando visito minha
família mineira, como carne, ovo frito, pão de queijo. Fantasio que sei o nome
da galinha sacrificada, como talvez soubesse nos tempos de infância.
Limpo os óculos várias vezes ao dia. Sabão de
coco e água, ficam transparentes as lentes. De duas em duas semanas um casal
amigo, Jorge, o Russo – e Eliany – dá uma geral aqui em casa. Maravilha, um
auxílio luxuoso.
Hoje mesmo – que já é passado – gravo aqui em
casa, só, as apresentações que faço dos programas Saiba+ que têm ido ao ar pela
TV Comunitária do Rio. Tento torná-los atemporais, pra que possam ser
veiculados em qualquer época. Os recheios são os vídeos-registros-documentários
que realizei ou produzi, só ou com amigos e colegas. Imagino possam ser
veiculados como programas de rádio, se não sem, quase sem alterações. Para
gravar, sei apertar os botões básicos da câmera simples e boa que Elizeu me
sugeriu. Já editar, não sei, sou suprido por profissionais amigos.
E escrevo, re-escrevo, de acordo com os
sentimentos que variam em mim.
O FGTS que recebi quando fui demitido do Sesc
Rio tem sido a base para as despesas extras, como a impressão do livro, a
edição dos programas. Já financiou parte das despesas com um Blogspot onde
reúno quase tudo que me exponho, textos e links. E a página que o Videolog me
oferece, onde disponibilizo quase todos os vídeos. Já o desejado sofá, só
quando entrar um dinheiro extra de um trabalho extra. A vida simples, mas boa,
do dia-a-dia, o salário simples de aposentado garante.
10
Incertas
Por
limitações humanas,
quantas ideias, invenções, soluções simples
foram e estão sendo deixadas de lado por cada um de nós? O que faz com que alguém acumule o que não necessita e que
poderia ser útil para outros? O
preenchimento de vazios dentro de si mesmos? Se vazios, que vazios seriam
estes? Quais origens destes vazios individuais que talvez gerem tanto
consumo, tanta necessidade de poder?
Tenho feito a mim estas perguntas que faço a outros.
Pouco a pouco percebo
como meus próprios vazios estimulam meus comportamentos. Dói tomar consciência
do que sou, dissolver a imagem ideal que tenho de mim. Tranquiliza reconhecer
meus limites, o que me falta. Facilita agir a partir do que disponho. Fico do
meu tamanho.
Ligo a TV e alguém que não conheço me informa que preciso ter algo que
antes desconhecia. Tenho em mim agora uma necessidade. Se tenho recursos para
supri-la, satisfação momentânea. Se não, um sentimento de impotência,
incompetência, outro vazio. Me faz mal, muito mal, esta publicidade do que não
me faz bem... nem está ao meu alcance. Imagino crianças e adultos inocentes, a
todo momento chamados para novas necessidades que não têm condições de
adquirir. E que não suprem os afetos básicos, alicerces de bem-estar de fato.
Ronald Laing,
em Laços, sintetiza: Mamãe me ama. Eu me acho bom. Eu me acho bom porque mamãe me ama.
E, se mamãe não me ama, eu me acho mau.
Criança, inocente –
imagino como muitas – desamores, desatenções alimentaram meus vazios. Descubro
em mim, não tenho esta dúvida: os vazios que vivi e não transcendi, repito
diariamente nos meus sentimentos, pensamentos, palavras, gestos. Hoje,
invertendo, talvez mamãe aqui
signifique aquela mamãe que volta e
meia tenho oportunidades de ser. Comigo, com o outro.
Compreendo ato falho
como algo que – diferente da minha intenção consciente – espontaneamente
penso, falo, faço. Desde, sem
querer-querendo, chamar o outro pelo nome errado até pegar o caminho da
casa da namorada quando aparentemente intencionava ir para outro lugar. Assim, atos falhos me interessam, traduzem o
que lá dentro – fora da consciência – guardo, retenho, sou.
Pulo
No mundo, hoje, grande parte dos recursos são
gastos em controles.
Mas, acredito, se responsabilidades e direitos
– ganhos e perdas incluídos – são compartilhados com os trabalhadores de cada
empreendimento ou instituição, naturalmente cada um cuida melhor do que também
é seu. Neste cenário humanizado, os custos e os controles diminuiriam
consideravelmente. A tendência, co-laboradora, o ganha-ganha. Talvez aqui uma
contribuição para transcendência de crises econômicas. Na origem de tudo, o
desejo de quem decide o que está ao seu alcance.
Reflexões singelas como estas – quando o
olhar para fora é voltado para dentro de mim – me ajudam orientar meus
caminhos. Atento ao que está ao meu alcance, reconheço o que falta e me falta,
delimito, ajo, realizo.
Descubro
na internet
que existe uma rede de tecnologia social em
que soluções inventadas são disponibilizadas gratuitamente para quem deseje. A
cisterna que o pedreiro nordestino construiu e que acumula água de chuvas é
referência. Cisternas semelhantes já minoram a falta d’água para centenas de
milhares de famílias.
Imagino uma pequena mudança de atitude minha
ou de qualquer um e de muitos: compartilho o que aprendi e me facilita a vida,
torno minha vida mais agradável. Ofereço pelo prazer de dar. Comigo isto se
torna mais fácil quando me permito pequenos grandes prazeres. Ando descalço,
espreguiço, como com as mãos, digo uns sins, digo uns nãos. Abraço inteiro,
brinco com o corpo, rio de mim, divago. Trabalho sem perceber: quando me dedico
ao que gosto, 24 horas por dia estou atento sem saber. Livres associações são
imediatas.
Sempre que mudo de trabalho me dá um medo
danado. Depois de tantas mudanças aprendi que dá tudo certinho, sou capaz de
aprender o que não acreditava possível. Sei também que quando trabalho com o
que não me identifico, sofro, fico mal-humorado, chateio quem não tem nada a
ver. E, quando me permito estar bem comigo, trato aos próximos como trato a
mim. Fico bonito, me sinto assim. Mas – mesmo já sabendo tanto – vario.
11
Reflexos
Há tempos, um dia qualquer
Ontem e hoje
misturados: tempos fora de ordem, as datas variam nestes escritos. Falo de
outros, falo de mim. Agenda tão cheia que não tenho tempo pra me aproximar de
mim mesmo. Escondo-me de mim no trabalho, não me dou limites. Só posso reclamar
ao espelho. Ajo como se não tivesse consciência. Aparente let it be, laissez-faire, deixa a vida me levar.
Terapia Comunitária me tocou, vou às aulas, pratico as rodas, decido internamente fazer um
vídeo, estou em produção. Escrever como aqui me tem feito bem. Levanto cedinho,
três, quatro vezes por semana, escrevo. Chega às minhas mãos uma transcrição da
fala do Dr. Luiz Moura no vídeo Auto-hemoterapia,
já produzo a impressão de livreto, penso agora como fazê-los chegar a quem
precisa e se interessa.
De segunda a sexta,
dia inteiro no Sesc, cuidando do que me propus, burilando o que me decidiram.
Antecipo, proponho movimentos antes que me proponham. Sirvo ao público com o
melhor de mim. Sou um servidor público. A regra de ouro, presente, me tranquiliza:
não faço a outros o que pra mim não desejo. Tudo ao mesmo tempo aqui e agora.
Se reclamasse,
seria de barriga cheia. Não tenho um comprimido em casa, comida gostosa todo
dia, banho quente ou frio, máquina de lavar, lavanderia que leva e passa,
arrumadores que varrem e cuidam, vizinhos que me protegem, telefone que
funciona, eu desligado da tv. É meu, meu tempo. Preciso ser atento e forte, não tenho tempo de temer a morte,
agradeço a Caetano. Desejo recuperar
meu humor primário. Entreabro a porta de minha segunda infância.
Eu também?
Posso ter entendido
Winnicott diferente do que escreveu. Arrisco. Ele fala da conveniência de uma
moça querer ser uma mulher. E de um rapaz desejar ser um homem. Mas constata
que não é sempre assim. Quando se considera o inconsciente e os sentimentos
mais profundos, descobre-se facilmente um homem durão querendo muito ser uma
moça. E uma adolescente com uma constante inveja dos homens. Isto pode estar
escondido no inconsciente reprimido.
Me angustio
com os que
perambulam sem tudo – afeto, trabalho, comida, teto... Não sei o que fazer, dou
um real aqui, um olhar ali, pago um prato. Muito de vez em quando quero saber,
converso. Quando não suporto, mudo de calçada, o coração apertado, uma culpa
danada.
Minha memória,
alguém me diz, é de peixe, esqueço nomes, fatos. O que me comprometo, anoto,
agendo. Quase tudo é como se fosse a primeira vez.
Ajudo meus filhos
quando cuido de minhas próprias angústias. Quando não transfiro meus desejos.
Ajudo mais se consigo compreendê-los, acolhê-los e a mim, lembrar-lhes quem
somos. Estas luzes são raras. O mais frequente, evito atrapalhá-los nas suas
próprias buscas.
Quando estou
equilibrado, aí sou bom. Suprido, escuto. Solidarizo, fortaleço. Enquanto não
sou assim – aos meus olhos quase perfeito – me proponho ser. Pisco, tropeço em
meus próprios buracos. Com dores, paro, sinto, reflito, experimento um passo
atrás, pro lado, pra frente. Vivo como aprendo a dançar. Este outro meu
capital, o que vivi, o que vivo.
Pausa pra escutar os homens do Bope
que na rua em frente correm agora cantando canções de morte e guerra. Imagino se canções de ninar, de roda, de dança.
Antonio Faundez,
em conversa com
Paulo Freire, do que entendi, utilizava a filosofia como meio para analisar a
situação política, a vida no mundo concreto. Estudava filosofia como uma
maneira de se apropriar de conceitos, de capacidade crítica para entender a
realidade.
Mais ou menos um dia
Um
dia destes. O avião ronca. Quatro da
matina, cochilo, lembro da importância do som neste documentário. A entrevista
com Adalberto, a roda da terapia comunitária, as possibilidades de insights ao vivo, os depoimentos de quem
viveu. Este o plano. Agora é com a realidade.
Ontem dia inteiro
de reunião com o UNICEF, focado no repensar o Encontros, experiência em que jovens de camadas sociais diferentes
se reúnem e, desejo dos que promovem –
Michel, Cláudia, Gilberto, Luciana, Charles, Fernando... – ampliam
conhecimentos sobre si, o outro, o mundo.
Antes, cedinho, saudação
ao sol, café, imeios, telefonemas, embalo livretos de autohemo, pra Glória, por
favor, despachar pelos correios. À noite converso com Elizeu sobre o roteiro
que montou e a busca de financiamento da Fiocruz.
Arrumo a mala,
molho as plantas, telefono, lavo e estendo a roupa, boto correspondência em
dia, carrego as baterias das câmeras, tomo banho, como caqui e melancia e desço
correndo pra encontrar Michel no táxi que nos leva ao encontro de Hélio no
aeroporto, rumo às Ocas do Índio, em
Morro Branco, pertinho de Fortaleza. A caminho sinto falta das chaves de casa,
telefono à uma da manhã pro Jorge. Descobre que algum outro vizinho já as
trouxe, sãs e salvas, pra dentro.
À espera do
embarque, entre conversas curtas, puxo uma, Hélio, cordialmente crítico, me
lembra que sempre tenho uma solução pro mundo. Entalo. É verdade.
Ocas do Índio
2008. Oito dias de
frente prum mar morno e céu estrelado, tempo todo mais atento a mim e a outros.
Bioenergética cedinho, intercalo, intercalamos razões e emoções, descobertas e
compaixões, dores e prazeres. O clima é de reconhecimentos. Somos entre trinta
e quarenta, agora mais que profissionais, pessoas. As noites são calmas, leves
as comidas e os pensamentos. Cuidando de mim, aprendo um tanto cuidar de nós.
Os que vivemos nos tornamos próximos.
Adalberto de Paula
Barreto é o mestre, maestro. Sua Terapia Comunitária, já sabemos, facilita
rapidinho solidariedades. Neste espaço, combinamos antes, cada um só fala a
partir do que viveu, experienciou. Conselhos, julgamentos não valem. Todos têm
oportunidade de se expressar. Quando cada um que deseja fala – das suas
alegrias ou, mais comum, do que lhe atormenta –, todos escutam. É
democraticamente escolhido, para aprofundamento, o problema com o qual mais pessoas
se identificam. Em busca de melhor compreensão, quem fica na berlinda dá mais
informações e responde a perguntas. Contextualiza. Depois, em silêncio, ouve
quem contribui com o relato de suas próprias vivências similares.
Emoções afloram,
pipocam identificações, pessoas se aproximam. Ao final, os que querem, falam do
que levam desta roda. Muitas vezes conforto, tranquilidade, compreensões,
auto-conhecimento e estima. Germinam vínculos, fortalecem-se laços, nascem e se
realizam projetos voltados para interesses comuns ali descobertos.
Cultura, o que é?
Antonio Faundez
lembra Paulo Freire e se identifica com o que ele dizia que descobrir uma
cultura é aceitar outra cultura, tolerá-la. E afirma que a cultura é mais do
que manifestação artística ou intelectual através do pensamento. Sua
manifestação mais profunda está nos gestos simples do cotidiano, como os
diferentes jeitos de comer, dar a mão, relacionar-se com o outro.
Eu próprio quando
leio Faundez, o escuto impregnado de minha própria cultura. Já não é mais
Faundez puro. Somos agora misturados, inclusive a Paulo Freire.
Posses
Tudo muito bem,
tudo muito certo. Reconheço, já não tenho meu tempo. Descobri maduro que não
sou eu que tenho as coisas, são as coisas que me têm. O carro que não tenho me
obrigaria cuidá-lo, guardá-lo, emplacá-lo, mantê-lo. O animal que não tive me
pede atenção, cuidados. O dinheiro requer guarda, controle. O que guardo nas
prateleiras, no guarda-roupas me pede limpeza, arrumação. Tudo me pede tempo.
Se não pede, toma. Hoje, ainda, como não tenho
meu tempo, corro.
Na minha infância não
soube de faltas até o momento em que, na cidade maior, vi a vitrine. Desejei o
que não tinha. E por muitas vezes me angustiei por não me suprir das novas
necessidades criadas. Só agora compreendi que o que aparentemente possuo é que
me possui. Minhas posses me aprisionam.
Foi bom tê-las – estas coisas que me têm – e agora deixá-las a uma e
outra. Por mim, hoje, só escreveria, filmaria. Muito do que me impede é minha
carência, que me faz querer ser reconhecido, admirado, mesmo eu sabendo que –
se minha auto-estima depender do olhar de outros – posso eu próprio não me
reconhecer. Como diz o Adalberto, o que
você quer que eu queira, pra eu querer?
Winnicott
dedicou a vida
à pediatria e à psicanálise, especialmente a
infantil. Fez, nos últimos anos de
vida, palestras para os públicos mais diversos.
Tudo
Começa em Casa
é o título do livro póstumo que contém estas palestras. Cada capítulo se
encerra em si mesmo. Sua leitura tem me facilitado a vida, um tanto pela melhor
compreensão de mim mesmo, outro tanto pela compreensão do outro, mamãe
inclusive. E meus lados mãe, pai, filho.
Livre pensar,
levitação de tempo e espaço. Ausência de nada, presença de tudo.
Pulsação, inspiração, expiração. O fio invisível que me abre o fluxo.
Limbo
Eu, 65, de repente mudança de referências. Me desculpo, confundo,
misturo vida e trabalho, constante busca, antecipação de futuro – experimento
já desejos pro futuro. Utilizo indicadores: tranquilo humorado me sinto no
caminho certo. Se não, que realizo para novo equilíbrio?
Algo clareia: aprender a viver – tranquilo humorado – com o que está ao
meu alcance?
Ficção
A busca-em-ação, a buscação é descoberta, experimentação, sim e não.
Olho pra trás, domina a memória enevoada. Quando emergem lembranças, as felizes
sobressaem. Tudo muito variado, umas vezes assim, outra incorporado.
E
eu,
aqui, em qualquer momento, impregnado de mim. Confuso e lúcido. Em
conversa cifrada comigo mesmo, num misto de coragem e medo. Meu universo pulsa,
sou centro e partícula, sou todo volume e não sou. E a prática de realizar:
sonhar, lembrar, uma história, um plano passo a passo, fazer passo-a-passo.
Primeiro a estrutura – o lugar de morar, a saúde para cozinhar, lavar não
passar, a feira, o mercado, o pequeno conserto, a manutenção, cada coisa tem
seu lugar. Aos que frequentam, livre estar e cada coisa volta pro seu lugar. +
a destinação dos objetos acumulados que me tornam um carregador do que possuo.
As caixas numeradas. E alimentação de processos que dependem de outros.
Antes a ruptura. A palavra já não mais presa, a consciência serena, a
ética como o básico. A segunda carta aberta, o email geral: compartilho as
perguntas que me faço, as respostas que me dou. A primeira, aos mesmos
contemporâneos da instituição, sugestões para a prática interativa de
transmissão de conhecimentos que a lei determina e os recursos estão aqui. Esta
gera uma chamada de atenção formal. A outra, a demissão.
Dor e prazer. Alegria também pela alforria, raiva pela cegueira do
outro, tristeza pela recusa e falta. Diluiu? Evaporou? Passado um tempo, já é
passado. E neste enorme cenário em vivo, tenho focado no que me mantém tranquilo,
também procuro mel dentro do azedo. Dos bônus, o fundo de garantia, uma
segurança. O plano de saúde mantém o custo, cumpre a lei.
Então!
Estrutura, a casa pronta
Que mais? Com método, cada tarefa agendada. Pesquisa do necessário,
separação de documentos, reprodução, consulta a quem sabe como é o processo
todo. Contagem do tempo das contribuições, marcação apresentação. Um dia após
65 anos, entrevista, papéis corretos, direitos garantidos, aposentadoria.
Orçamento responsável: despesa nunca maior que receita. Adapto-me,
camaleão. Vida mais simples, comida saudável, nova rotina que nem sei.
Permanecem a saudação ao sol, os primeiros movimentos bioenergéticos.
Simplifico o vestuário. Estou organizado.
Aposentadoria, plano de saúde, objetivos alcançados. O plano funcionou,
o cronograma diferente do previsto. Cuido da legalização da morada.
Tostão
De novo, quando leio, entendo do meu jeito.
E arrisco. O jogador, pensante, filosofa. Lembra da solidariedade e da
impossível liberdade total sonhada por Sócrates, o do Platão. A utopia como
referência, alimentação do desejo. Inalcançável. A lembrança de Tostão me
anima, faz bem. Sonho, sem me limitar ao possível.
Narciso
Olho no espelho e me surpreendo, tão jovem e
com estas marcas... E é eu.
Insight
O mundo muda quando cai a ficha. Quando o que
compreendo me toca emocionalmente, minha vida ganha novo sentido. Mudaram meus
desejos atuais quando me toquei que muitas das minhas necessidades recentes de
poder – e dinheiro e objetos – estavam relacionadas a afetos que desejei e não
tive na minha infância. Tenho me sentido melhor quando hoje procuro suprir
diretamente os afetos que hoje desejo.
Primeiro,
aprendi do que vi, ouvi, tateei, cheirei,
botei na boca e senti. Desde criança transformei-me no que me foi apresentado
como modelo.
Estou
fundamentalmente impregnado de informações que, no correr da vida, recebi tanto
da escola, igreja, família quanto dos meios de comunicações e dos que estão ao
meu redor. Eu mesmo colaboro para a manutenção da moral atual, quando nos atos
e encontros de toda hora transmito meus preconceitos aos meus filhos, amigos,
vizinhos, colegas de trabalho. Enfim: o homem que sou hoje é fruto do que antes
senti, aprendi. O homem que serei amanhã deverá ser fruto do que hoje aprendo e
sinto.
O que percebi em mim, percebo em outros.
Maputo, 1981, foi quando isto ficou claro pra mim. Desde então faz parte de
minha visão de mundo.
Desisto
de mim ou de você?
O que é bom pra nós – pra mim, pra você –
define o que podemos? Descomplicando, talvez já saibamos como tornar possível
nossa relação: respeitar-me a mim e à outra, ao outro. Quero, por exemplo
publicar o que escrevo, inda mais quando escrevo o que sinto. Me limito, me
emudeço ou faço o que desejo? Desisto de mim ou de você? Ou não desisto e
realizo meu desejo, independente de você? Amor implica em dependência? Ou ao
contrário? Amor não como prisão, mas como estímulo à liberdade? Vice versa? Eu
aqui com meus sentimentos.
12
Balanços
Presente
Tempos passados, semana dessas... A semana começa, dois dias e já me
canso do trabalho que não escolhi. Me pego ansioso em relação ao que me propus:
realizar o vídeo Terapias Comunitárias e escrever um livro. Tenho tido prazer
em levantar cedo e escrever sem compromisso. Gravar situações emocionantes
também é prazeroso. A ansiedade, desconfio, vem da inclusão de limitações ao
tempo. Determinar datas me obriga a cumpri-las. E aí, já sei, minhas escolhas
perdem sentido. Que fazer?
Uma primeira opção é respeitar os tempos
naturais, meus e dos outros. Uma série de tarefas preparatórias antecede
gravações. Depoimentos conceituais, opiniões, visões do método, da sua
aplicação, eficiência, eficácia, já colhi suficientes – com a ajuda de Michel,
Naly, Carolina, outros colegas do curso de formação. Agora são necessárias
rodas de TC. Fiz os primeiros contatos com terapeutas, os equipamentos de
gravação estão comigo, as autorizações de imagem e som estão impressas, prontas
para preenchimentos e assinaturas, está à mão o dinheiro necessário pras
despesas de transportes e pequenos gastos. Posso agendar com quem deseje. E
articular com Elizeu ou Jun Kawaguchi ou Jorge uma segunda câmera.
Em busca de financiamento, Elizeu preparou as
informações e deu entrada na Fiocruz. Neste caminho, nos colocamos como
parceiros, intencionamos construir juntos direção, roteiro, produção. Está
prevista resposta em trinta dias.
Outra trilha é a minha usual. Planejo, mesmo
sabendo que a realidade será diferente. Nos meus tempos – com o apoio de um
amigo aqui, um voluntário ali, prestadores de serviços acolá – articulo,
produzo, gravo, oriento a transcrição, decupagem, roteiro, edição. Então,
matriz, capa e rótulos prontos, encomendo cópias e parceirizo distribuição
caseira.
Deu certo assim com o Energia da Vida, o Aparelhos
Orgônicos e, maior sucesso, com o Auto-Hemoterapia,
Contribuições para a Saúde – Conversa com Dr. Luiz Moura. Permanecem
prontos à espera e em busca de seus públicos o Candomblé, o Ilha Grande,
o Práticas Chinesas de Auto-Cura, os Psicoterapias Corporais, o Energia Orgônica e Saúde Pública. Como
todos são atemporais, em algum momento, acredito, passarão em tv aberta. Quem
participou das feituras – Victor, Ipojucan, Bruno, Pedro Farias, Bel, Raul,
Sônia, Pedro Sarmento, Fran, Elizeu, Félix, Katty, Christiane, Thiago, Rudá,
Oscar, Grasiela, Thamires, Mejia, Phillip, Gilberto, Ana, Regina, Rafael,
Pavel, Caetano, Lucas... tanta gente – gostará.
Quanto ao livro,
estamos aqui, nesta brincadeira eventual ou de
quase todo dia. Fiquei surpreso e satisfeito com o livreto que produzi com o
conteúdo da entrevista feita por mim e Ana com Dr. Luiz Moura, a capa com
design de meu filho Pedro, ilustração de Fran Junqueira, a experiência de
Leandro Godoy. Ficou bonito, atraente mesmo. Estou satisfeito também com meu
prefácio. O livreto me estimula este livro. Pensei uma parte subjetiva, outra
objetiva. Mas, como Lennon já disse, a vida acontece enquanto a gente planeja.
Tudo muda num instante.
Aliás, como sou o que aprendi, li, escutei...,
toda ou quase cada letra – palavra, oração, frase... – que escrevo merece
citação de quem a inventou, descobriu, idealizou. Porém, ai, porém, sinto, as ideias estão no ar. É só relaxar que
elas chegam, pra mim, pra outros. A quem pertencem? E o tal do inconsciente
coletivo? É certo falar é meu? É ético possuir direitos autorais?
Pra parte objetiva pensei descrever o que criei,
co-inventei e entendo prático. A metodologia de redes comunitárias e que mais?
Imagine
Um espaço onde, em roda, se encontrem
moradores de comunidades populares menos favorecidas, além de pessoas e
instituições interessadas no bem-bom de todos. Naquele momento, um de cada vez
se apresenta e sinteticamente diz o que oferece, o que procura.
Quando todos sabem o que cada um procura e o
que cada um oferece, a roda se desfaz. E, naturalmente, cada um se aproxima
daqueles com quem se identifica, em busca de mais informações e construção de
parcerias.
Imagine ainda que estas ofertas e procuras declaradas
em cada encontro sejam escritas e distribuídas, para que outras pessoas, mesmo
se não estiveram presentes, possam participar.
Imagine também que você possa compartilhar
conhecimentos que você adquiriu no correr da vida. Por exemplo, como voluntário,
ensinando o que sabe a quem procura por este saber. Ou que aquele objeto - que
você guarda e não é mais útil para você - possa ser utilizado por outros. Um
carrinho de bebê, um cobertor, um móvel, uma ferramenta. Imagine que você possa
entrar na roda, estando lá ou, incógnito, via internet.
Redes
Base das Redes Comunitárias, os encontros
presenciais são voltados para a prática de parcerias entre quem deseje.
Moradores – a grande maioria de comunidades populares – e pessoas ligadas a
instituições privadas, públicas e do terceiro setor, além de profissionais
autônomos e voluntários. E curiosos.
De modo simples e objetivo, cada um dos
presentes, representantes de instituições e de comunidades, se apresenta e fala
do que veio procurar e do que veio oferecer. Todos têm oportunidade de falar e
de ouvir. E, quando cada um sabe quem é quem, o espaço se abre para o
aprofundamento de relações e formação de parcerias.
Para facilitar articulações entre todos, cada
um recebe – impressa ou virtualmente – uma relação atualizada de participantes,
com endereços, telefones, e-mails. E os Classificados Sociais, que descrevem
sinteticamente o que é oferecido, o que é procurado. A cada novo encontro,
estas listas são acrescidas, atualizadas, compartilhadas.
Só
O passado volta e meia presente. Dia destes...
Acordei com este sentimento que traduzo solitude.
Sou responsável pelas minhas atitudes. Como naquele símbolo das olimpíadas, o
desenho que imagino de relações ideais se compõe de círculos parcialmente
superpostos, cada círculo representando uma pessoa. Os interesses comuns são
representados pelas áreas comuns. As áreas externas aos entrelaçamentos
correspondem aos interesses específicos de cada um. Ali sou só, ali vive minha solitude.
Quando respeito meus interesses específicos,
fica mais simples respeitar os dos outros. Mas quando não me respeito, lá vem
raiva, culpa, contenção, tristeza. E pra evitar estes sentimentos tão chatos,
me afasto, acabo por evitar contatos mais profundos. Aí é solidão.
A
compaixão que mereço
vem de quem procura olhar com meus olhos. E vice
versa. Sinto assim quando experimento o olhar do outro. Contraditoriamente, ou
não, em busca de crescimento, quando necessário ofereço ao próximo a crueza do
que percebo. Na verdade, desconfio, só exponho incômodos a quem de alguma forma
me interessa. Se não – inconsciente? – a
indiferença e o esquecimento prevalecem.
Entre os efeitos de minhas neuroses está um
tanto a impaciência, às vezes a indelicadeza. Pero, mineiramente, aprendo evitar confrontos. Tenho constância no
respeito a tratos.
E, tentando enfrentar culpas apreendidas em
minha infância, experimento cada vez mais suportar prazeres. E pra evitar
obstáculos, contorno montanhas. Um passo atrás, dois à frente, quase um bolero,
estes tempos. Se consciente e forte, escolho o que pode dar certo.
Volta e meia, quando em conflito, acordo à
noite, suo, sofro. Não gosto. Prefiro viver com quem me identifico, troco. Isto
significa critérios, valoração. São escolhas.
13
Programas de TV
Imagino um
No palco, tudo muito simples. Pessoas em roda,
vieram pela oportunidade de compartilhar questões de todo dia. Falar, ouvir,
sempre a partir do que cada um viveu. As frases, é combinado, são na primeira
pessoa, começam com Eu. A metodologia
pode ser, por exemplo, a da Terapia Comunitária. Como ela, há outras maneiras
de facilitar expressões mais profundas e estimular solidariedades. Isto
acontece todo dia e nós temos acesso.
Imagino outro. Outro ambiente. Central do
Brasil, por exemplo. Um palhaço faz a pergunta que deve ser respondida em um
minuto pelo passante. O que você pode
fazer para melhorar suas relações com sua família?
Esta pergunta – e outras, diretas – estimulam
respostas relacionadas a experiências pessoais. O espectador, na medida em que
se identifique com o relatado, tenderá a também se questionar. E quando cai a
ficha... muda a visão de mundo... e o mundo muda.
Dois câmeras atentos a si e ao outro. Os
sentimentos inesperados que afloram devem ser suportados, focados, gravados.
Para que os espectadores tenham também possibilidades de se identificar com
estes sentimentos, perceberem que não são só seus, solidarizar-se com os que
sentem. Nascem vínculos entre quem vê e sente e quem originalmente vive e
sente.
Toda semana os câmeras gravam, os espectadores
interagem sentimentalmente. Ambos, além dos protagonistas, podem se desenvolver
a partir da consciência do que sentem, do que são. E quando caem as fichas –
quando cada um se compreende um tanto, emocionalmente – espaços se abrem para o
entendimento de causas de comportamentos atuais. E, no tornar-se consciente – a
perda da inocência –, possibilidades de transformações.
Nenhuma velocidade estonteante, são outras as
sensações. O caminho é emocionante, pra quem se permite, atento, sentir. Ao fim
de cada encontro, cada um carrega consigo o que sentiu, vivenciou. E, no
cotidiano, sua memória emocional o acompanha, estimula a consciência dos seus sentimentos,
pensamentos, palavras, atos. E aquele antes espectador tende a desvendar
caminhos, a dar passos como protagonista de sua própria vida. Isto acontece
todo dia. Faltam os câmeras e aqueles que realizam e veiculam programas de TV.
Sonhei uma multidão
- 400 pessoas? -
disponível para uma brincadeira de crescimento.
Sugeri de imediato
que cada um de nós, a partir deste momento, só falássemos o que porventura
fosse bom pra si mesmo, pra quem escutasse ou para aqueles a quem a fala se
referisse.
E ofereci
escolhessem. Vivenciarmos juntos uma sessão de terapia comunitária. Ou,
divididos em grupos de até 40, fizéssemos rodas onde cada um pudesse em 1 ou 2
minutos falar do que oferecia e do que procurava aqui, agora.
Eu poderia
facilitar um encontro ou outro. Acordei.
Entrevistas
O repórter, aqui, é
produtor, observador. O entrevistado é convidado a falar para outro, alguém que
faz parte do público a quem se destinam as informações que oferece. O
entrevistador, agora, é leigo, curioso. O inesperado: a entrevista se
transforma em conversa, entrevistador e entrevistado se alternam. O
entrevistado encontra a linguagem do público. O público agradece.
Focos nos conteúdos
Como convidada, aquela pessoa especial, cuja
fala corresponde às suas ações, ao que é. Como entrevistadora, aquela pessoa
interessada. Estão próximas, o que permite o tom de voz normal. A convidada
fala diretamente para quem a entrevista. No meio, atrás ou ligeiramente de
lado, voltada para a convidada, uma câmera ligada está esquecida, não há
operador. No quadro, cabeça, ombros, talvez os gestos das mãos. Microfone
direcional, de lapela? Quando reproduzida na tela, a entrevistada estará
olhando diretamente para os espectadores. Sensação de proximidade. Quem ouve
atento, se comove, compreende, internaliza novos conhecimentos, se sente mais
inteiro que antes.
Somos todos artistas?
Aconteceu no Teatro Carlos Gomes. Quem esteve
presente nunca será o mesmo. Saiu mais vivo que entrou. Pura promoção de saúde.
Bom negócio pra todo mundo. Ficou gravado só nos corações. Pode acontecer toda
semana? Gravar também audiovisual, passar na televisão?
Assisti outro dia um programa ganha-ganha. Criação
coletiva, com dedos do Pontes, o Roberto – o
saber em todo ser. E de Vitor, o Pordeus, o médico-ator. O artista-facilitador,
Vitor, cede espaço para quem chega mais. Facilita, estimula a expressão do
outro. No palco, auxiliares são receptivos. Os músicos intercalam popular e
clássico, vinhetas criam climas. O público espelha o apresentador, acolhe e é
acolhido. Palco e plateia interagem, trocam de lugar naturalmente.
Na plateia, no palco, roupas, chapéus,
acessórios estão disponíveis, espalhados por todos lugares, acessíveis a quem
deseja, somos todos artistas. O
público-artista, na maioria, da periferia do Rio. Na programação, ciência e
arte dialogam, conversam como se fosse comigo. Na produção, tudo junto e
misturado, pessoas ativas de comunidades populares, de serviços públicos, de
ONGs, voluntários.
Outro programa assim, produzido por quem de
espírito semelhante – Pordeus pensador ativo, inclusive – foi o Loucura Total, no Instituto Nise da
Silveira, Museu de Imagens do Inconsciente. Até hoje não sei quem era público,
quem era médico, doido ou paciente. Música, letra e festa da melhor qualidade. Não
ficou dúvida: somos todos iguais.
Em programas assim, o fim é o bem-estar. A
forma e o conteúdo são meios. Quantos mais singela a forma, menos chama a
atenção sobre si. A forma, aqui, se torna mensagem. Reafirma o fim, a função do
próprio conteúdo. O pensamento, o sentimento é a linguagem. O meio, a mensagem.
14
Piripaco
Mais passado
Outro dia. Sinto o
lábio superior, à direita, como que levemente anestesiado. Mesmo estranho, não
esquento. Uma e outra vez o olho direito embaça, lacrimeja.
Dois ou três dias
assim, estou num almoço amigo, uma amiga me fala que um lado do meu rosto está
diferente do outro. Os presentes se ligam. Cláudia insiste, vamos à emergência
do hospital São Lucas. Sala de espera cheia, receio de AVC ou algo assim,
priorizam meu atendimento.
A médica me examina
em pé, solicita ali mesmo exames. Já sentado, uma auxiliar retira meu sangue,
instala o pinga-pinga do soro. Próximo passo, tomografia. É tarde de domingo,
movimento crescente na emergência. Um dedo quebrado, o excepcional em crise, um
letárgico em cadeira de rodas, outro que já chega morto, uma idosa à procura de
escuta, todos em busca de cuidados e afetos, os nove boxes cheios, os espaços
de espera também. A médica me diagnostica, talvez paralisia parcial periférica.
Causas ainda indefinidas. Receita o que considera necessário, me orienta para
um neurologista. Anoitece, saio confortado com o atendimento, me senti cuidado.
Na segunda, no
lusco-fusco da madrugada relembro e faço, como exercícios, movimentos com os
olhos e músculos. Telefono pros bem próximos, tranquilizo, me emociono,
agradeço acompanhamentos, disposições e disponibilidades. Já com os resultados
da tomografia e do sangue, neurologista. Sangue bom – todos os indicadores de
acordo com as referências. Resultados normais, reflexos também. Aventa causas
possíveis. Meu plano de saúde facilita, o médico solicita outros exames. Chegou
a noite. Tomo um açaí na lanchonete, vou pra casa.
Terça, enquanto
marco exames, me fortaleço. Auto-hemoterapia, 5 milímetros retirados
do meu braço e aplicados imediatamente na nádega. Jun, acupuntor amigo,
pesquisa oriente e ocidente, traz informações, também aventa causas, me faz
perguntas. Faz sentido: um choque térmico talvez tenha sido provocado por
aquele vento forte do ventilador novo que mantive ligado ao meu lado direito
enquanto utilizo em casa o computador. Jun define uns poucos pontos, aplica. Na
terceira agulha durmo profundamente. Acordo uma hora depois, sonolento, vou com
ele à portaria, regresso direto pra cama.
Quarta, cedinho,
experimento... e já consigo fazer o que antes não conseguia. O olho direito
abre e fecha, sozinho, ao meu comando. O sorriso agora menos torto. Terceiro e
último dia da minha licença, escondo minha agenda e, um tanto culpado, aprendo
relaxar. Alguma certeza, mais que os remédios receitados e – lidas as bulas –
criticamente não acolhidos, redescubro, meu melhor remédio sou eu. Quero saúde,
me cuido.
Quinta e sexta pela
manhã a bioenergética facial agora diária, a saudação ao sol – ioga singela.
Pra movimentar a área da boca mastigo chicletes como nunca desde terça. A
alimentação permanece saudável. Água – que tomo pouco diariamente – agora um
litro e meio.
Eu, que me orgulho
de não ter comprimidos em casa – nem mercúrio cromo – procurei semana passada
um gastroenterologista, atraído pelas orientações que deu ao meu filho mais
novo e em busca de mais informações sobre minha já incorporada prisão de ventre
(associo: mau-humor, enfezado, fezes). Dr. Hélio me falou da água, das fibras.
Pressão 11x7, batimentos 60. Tudo bem pros meus quase 63 anos. Quando soube que
fumei brabo dos 10 aos 50, sugeriu exames: raios-x, sangue, ultrassonografia
prostática. Os resultados dizem que está tudo certinho. Também tenho me
cuidado, especialmente com o que aprendi com mamãe, Ana, Regina e Romel.
Alimentação leve, bebidas – álcool, refrigerantes – só eventualmente. Todo dia,
ou quase, 15 minutos de ioga, respiração mais funda, movimentos bioenergéticos,
alguns quarteirões a pé. Mas se subo escadas, arfo: sequelas da Souza Cruz, a
que fabrica morte por meio de cigarros.
Falo pra mim: moral
da história, a vida é curta, curta a vida, tento curtir a vida. Maior
obstáculo, as culpas sem sentido.
15
Talvez
Abstraio o tempo
Antecipo o futuro,
vivo agora o que desejo. Mas hoje foi ontem:
hoje tento separar
minhas neuroses das de outros. Não posso viver o que não é meu. Isto tem sido
aplicado no meu dia-a-dia atual. No trabalho especialmente. É que a instituição
em que vivo está confusa, insegura. Não tenho informações suficientes para avaliar.
Quando falo eu talvez represente nós.
Sei que os
dirigentes não tomam conhecimento do que realizo. E assim não recebo
reconhecimento. Como tenho estado seguro em relação ao que crio e faço, vou em frente. Arrisco. A
ética me guia. A missão da instituição me facilita: trabalho pelo bem-estar de
menos favorecidos, articulo redes comunitárias, fomento circulação de
informações de interesse coletivo.
Talvez algumas
causas da insegurança institucional estejam na sua cúpula. Tudo talvez: briga
de cachorro grande pelo poder? Que inclui interferir no cotidiano e no futuro
de mais de mil funcionários, no destino de centenas de milhões de reais –
dinheiro público – disponíveis anualmente, na utilização da infraestrutura
física e técnica construída nos últimos sessenta anos. Periga a credibilidade,
interna e externa.
A rádio-corredor
traz notícias, saiu ontem o diretor-geral, entra o terceiro deste ano. Neste
mais de 8 anos aqui, não conheço um funcionário próximo que tenha tido acesso humanista
ao presidente. Um e outros funcionários são demitidos. Tudo isto sem nenhum
comunicado ao conjunto dos que trabalham. Se as avaliações são pelos erros,
“melhor nada fazer”. A sensação é de desproteção, menosprezo. Parece que a
insuficiente inteligência emocional da cúpula estimula o desequilibro do corpo
da instituição. Interrupção brusca de projetos, ausência de definições, corte
nas comunicações humanas são base para insegurança e desmotivação crescente.
Ficam dúvidas: como
pode um diretor geral com formação em finanças – pressupõe-se interesse
prioritário pelo lucro financeiro – cuidar de uma instituição cuja missão visa
lucro social? Como pode uma instituição com fins sociais ter um fabricante e
comerciante de bebidas alcoólicas como seu presidente?
Talvez até estejam
sofrendo lá em cima. Nem posso ser solidário se nada sei. Talvez não saibam que
sua função é servir ao público, facilitar o trabalho dos que comandam.
Talvez, também,
esta insegurança coletiva esteja contribuindo para o afloramento de doenças em
outros, como em mim.
E talvez um ou
outro – cada um dos funcionários? – não esteja exercendo a responsabilidade
incômoda de expressar juntos seus incômodos.
16
Outro dia, um como outro
Pela manhã
Esta semana enviei convites virtuais pra todos
que estão no catálogo do meu email Yahoo. Terapia
Comunitária quase todas as sextas. Michel, com quem faço dupla normalmente,
está fazendo oficinas do Rio Abierto
na Rússia. Levanto cedinho, pernas pra cima, saudação ao sol, no caminho compro
tangerinas, tomo café com leite, pão com manteiga.
No espaço parceiro – o Centro de Movimento
Deborah Colker – duas moças já chegaram. Vamos pra sala, conversamos um pouco,
falo das redes comunitárias, do sempre presente emocional como pano de fundo,
dos encontros METS – Movimento Emocional e Transformação Social –, da dica da
Maria Teresa Maldonado sobre Adalberto e a metodologia que construiu. Outras
pessoas chegam, já somos sete, mais um pouco, oito, a roda se amplia. O cheiro
da fruta, os tons amenos das vozes, o sentarmos no chão, cada detalhe contribui
um tanto pra estarmos à vontade. Chegam mais duas e são acolhidas.
Quem
deseja propor uma brincadeira leve, rápida?
Um fala o próprio nome e o nome de outro que conhece e está na roda. O
que foi nomeado fala seu próprio nome, diz quem o nomeou anteriormente e
acrescenta o nome de outro que também está na roda. E assim por diante, sempre
repetindo todos os nomes já falados e acrescentando outro. Um esquecimento
aqui, uma ajuda ali, todos ou quase todos memorizaram os nomes de todos ou
quase. Antes houve consenso, não precisávamos saber o que cada um faz, de onde
veio. Estávamos à procura do que somos.
Alguém
se lembra das combinações da Terapia? Falar a partir da própria vivência, a partir
do Eu. Não vale julgar nem dar
conselhos. É um espaço para compartilhar questões que afligem ou alegram cada
um. Não é um lugar para segredos: segredos não compartilhamos. É um espaço de
escuta – um fala de cada vez, outros escutam. Se alguém se lembra de uma música
– ou provérbio, ou causo ou piada – pede licença e apresenta... Podemos combinar assim? Se um de nós se
esquece do combinado, lembraremos...
Imagino que outros, como eu, se acalmam ao
tomarem antecipadamente conhecimento da pauta. Todos confirmam, querem saber. Sintetizo
a sequência, prevejo o tempo que estaremos aqui. E início a próxima fase: Quem deseja compartilhar algum incômodo ou
alguma alegria?
Uma mulher compartilha. Aposentou-se há dois
meses, está em processo de busca de satisfação maior no viver... Anoto,
sintetizo o que compreendi e lhe pergunto se esta síntese traduz o seu
sentimento. Depois de duas ou três tentativas, chegamos: O que vou fazer agora de minha vida?
Cada um de cada vez, os que desejam, fala um
tanto do que lhe incomoda e, com o auxílio de um ou outro, constrói uma síntese
da sua questão. Outra mulher se pergunta como praticar sua teoria. E o resumo: Angústia pela procura de satisfação em minha vida. E mais outra
fala do Medo de sair da zona de conforto e ser feliz com coisas novas.
Alguém, 45 anos, filha mais velha dos seis
filhos, única solteira e que permanece em casa: Sofro com
a dificuldade de relacionamento com minha mãe. Os rostos e movimentos à
volta expressam identificações. Outra se expõe: Não consigo não atender às necessidades da minha mãe. E mais outra:
Como preservar meu espaço, tendo que
agora cuidar da minha mãe?
Entramos na fase da escolha do tema que juntos
cuidaremos. Cada um pode votar somente uma vez. O tema escolhido será aquele
com quem mais de nós se identificar neste momento. Relembro todas as sínteses
das questões apresentadas. Você pode
votar em qualquer tema, inclusive o que você própria apresentou. E repito
um a um, para votação. O tema é escolhido: Sofro
com a dificuldade de relacionamento com minha mãe.
Agradecemos àquelas que expuseram seus
sofrimentos, lembramos que, se desejarem, poderão reapresentá-los nas próximas
rodas. E que estamos disponíveis para conversas individuais, logo após o
presente encontro.
Pedimos então a quem nos trouxe o tema
escolhido que nos conte mais sobre seu sofrimento. E ela detalha, focada em
seus próprios sentimentos. Perguntas são feitas, em tentativas de despertar, em
nós todos, compreensões mais profundas. Sua emoção estimula que nos
aproximemos, fechando bem a roda. Alguém sugere e, abraçados, balançando,
cantamos juntos uma cantiga de mãe, e mais uma.
Lançamos uma pergunta-chave, procurando
ampliar o tema: Quem de nós sentiu
dificuldades em relacionamentos com pessoas próximas... e pode contribuir
expondo o que aprendeu desta vivência?
Uma participante conta sua história, suas
dificuldades com a mãe, as transformações do relacionamento após conversas
sinceras, o alívio.
Outra da roda fala de si, da mãe solteira em
ambiente religioso conservador, do casamento necessário, do padrasto bruto, de
sentir-se ameaçada por abuso, de não sentir-se amada pela mãe, da sua própria
dificuldade em conversar com ela e das mudanças positivas no relacionamento que
ocorreram a partir da saída da casa materna. E como esta nova situação
facilitou aproximações e reconhecimentos.
Mais alguém relata a satisfação da mãe, de
origem humilde, com a formação universitária da filha, ao mesmo tempo em que
ainda a via como a garota de quinze anos que andava com ela de braços dados.
Fala das diferenças e dos transtornos. E de como as conversas francas
facilitaram o aprofundamento das suas relações. E uma mulher fala do que viveu
e aprendeu.
O clima de agora já é diferente do início. Os
olhares são mais ternos. Há algo como solidariedade no ar. Somos vários, como
se fôssemos também um.
Levantamos e, à pergunta Que estou levando daqui?, uma fala do sentimento de solidariedade,
outra de amor, outro de algum alívio de culpa, e mais outra de como se sente
bem em estar
aqui... Alguém inicia A
minha mãe, é mãe solteira... mamadeira, todo dia... trabalha como
empacotadeira, nas Casas Bahia. O ritmo chega aos corpos, uma ciranda é
lembrada, dançamos em roda... e com calma nos despedimos, cada um de um e
outro.
Emoções de todo dia
À tarde,
Jun e o filho, Mitsuhito, chegam
alguns minutos depois das três. Apresento superficialmente as câmeras
gravadoras e lá vamos de táxi em direção à casa de atendimento comunitário aos
pés do Turano, no Rio Comprido. Mitsu prepara sua câmera fotográfica, Jun a
dvcam, eu a também pequena hdv. Converso com duas estudantes de psicologia. E
com nossa anfitriã, que todo dia ativa a casa. Chegam algumas senhoras
moradoras da comunidade... Depois Alex e Sandra, responsáveis neste dia pela
Terapia Comunitária. Somos em torno de dez pessoas.
Entre os problemas, a votação maior definiu o
escolhido. Uma senhora, em lágrimas, relata seu sofrimento com as vidas de seus
dois filhos. Um, na ilegalidade, foi morto pela polícia. O mais novo, preso por
motivos semelhantes, não retornou à prisão quando foi liberado para visitar sua
família. Permanece ilegal. Enquanto preso, a mãe, mesmo passando
constrangimento, o visitava o tanto permitido. Ela sofre também por não ser
reconhecida e valorizada pelo filho vivo.
Ao final, como tenho vivido em sessões de terapia
comunitária, os abraços, olhares e conversas traduzem os sentimentos, a
solidariedade. A mãe sofredora se declara confortada, mais animada. Vamos em
paz.
No dia seguinte
Na minha formação,
uma vez por mês participo de uma intervisão, sábado inteiro. Pela manhã, muitas
vezes, um convidado fala sobre algo novo para nós. Anteontem conheci um tanto
de Equipe Reflexiva, uma ideia e prática original de Thomas Andersen. Do que
entendi, enquanto uma família é atendida por um terapeuta, outros terapeutas observam
em silêncio e refletem. Os dois grupos trocam de posições, se a família deseja.
Os que observavam falam entre si das suas percepções, enquanto a família agora
os observa. Finalmente os membros da família fazem seus comentários. É um
processo reflexivo.
À tarde, roda de
terapia comunitária. Alguém apresenta sua dificuldade quanto à presença de
público nas rodas que realiza. Outra fala da sua dificuldade no relacionamento
com a filha adolescente. Esta última foi o tema escolhido, houve um maior número
de pessoas que, por se identificarem com ele, nele votaram.
A mãe detalha,
responde a perguntas, se emociona. Fala da sensação de perda do amor materno,
da vontade de matar, intercala choro
e desabafo. Depois, em silêncio, escuta experiências compartilhadas por uma ou
outra mãe presentes. Duas filhas contam, sob outro ângulo, o que viveram de
semelhante. Por duas vezes, dor de barriga, a mãe na berlinda vai ao banheiro.
O corpo fala. Volta, escuta, compreende um tanto, sorri entre lágrimas, se
acalma.
Na roda de
despedida, músicas e o que levo daqui.
Olhares complementam as palavras. Os gestos expressam afetos. Mais próximos do
que antes, nos despedimos com abraços.
17
Pausa
Horizontes
Lá na frente, como me vejo? Fecho os olhos, me
sinto adolescente. Abro, a imagem me choca, um velho. Quem é este homem maduro,
enrugado? Sei que agora não me reconheço ao espelho.
Hoje
Ou ontem, amanhã, o tempo se dilui em minha
memória frágil. Meu sofrimento hoje é
alguma tristeza difusa, talvez profunda atrás deste meu fazer vídeo, fazer
livro, fazer encontros de terapia, fazer, fazer. Talvez esta irritação na
garganta expresse o incômodo que sinto e do qual não me aproximo.
Se a vida, o mundo, é um palco enorme, em cada
espaço algo acontece. Como atos de teatros. Aqui e ali um nascimento, uma
morte, uma dança, tiroteio, um canto, um olhar, um desvio, choro, sorriso,
arrepio, descanso, tensão, medo, uma criação, destruição, solidão, um conforto,
desconsideração, solidariedade.
Quando sou o ator, tenho escolhido neste palco
o bem-estar que suporto. Quando espectador, uma vez visto, internalizo, não
releio notícias, desgraças. Minha referência tem sido meu humor. Se bem
humorado, é por aqui. Se mal-humorado, não. Tenho cuidado de me compreender. Já
sei que meu gosto pelo outro passa pelo meu gostar de mim.
Em casa, nenhum remédio. Nem comprimido, além
da Maravilha Curativa que cicatriza,
nenhum. Muito de vez em quando, como estes últimos dias, um sinal. Como esta
irritação de garganta, um início de catarro, remelas ao acordar. Talvez meu
corpo expresse algum sentimento contido. Desconfio de tristeza. Há alguns dias,
a maior parte de mim não deseja encontrar-se com ela.
18
Juntomisturado
Simples assim
Homens hipnotizados
passam agora correndo em frente. Cantam firmes, uníssonos. Dentre os versos
escuto ...É a vontade de matar...
Escolheram a morte como meio. Pra deles me defender, tento entendê-los, olhar
com seus olhares. Sinto medo dos seus medos. Pressinto que por medo, atiram.
Suas ações nascem das pressões que internalizaram – as ordens, os castigos,
suas missões – e do medo de sofrerem. E ainda ganham medalhas e parabéns.
São, somos, sou o
mesmo guerreiro de ontem e de hoje. Têm, temos, tenho um tanto da idade da
pedra. Repetem, repetimos, repito os bárbaros, domino mundos e perco guerras no
interior de mim mesmo. São, somos, sou semelhante a soldados hunos, persas,
egípcios, romanos, espanhóis, ingleses, alemães, americanos. Seus, nossos, meus
medos têm raízes em minha infância, são reforçados na adolescência, enrijecidos
agora adulto. Seus, nossos, meus horizontes são curtos. Imagino a atenção
constante, o inimigo em cada lugar, cada desconhecido uma possível vingança.
Quando matam, matamos, mato o outro, mato um tanto de mim. E não percebem, não
percebemos, percebo. Como quando elevam, elevamos, elevo o outro, a mim elevo.
Parafraseio Laing. Alguém me ama, me acho
bom. Alguém não me ama, me acho mau. E lembro Lennon, all we need is love. Love is all we need.
Empírico, sei, quem apanha em casa é quem
mais briga na rua.
Tudo
começa em casa:
Winnicott tinha razão?
Perguntas que me
faço...
Em cada outro, um pedaço de mim?
Em cada pessoa, um tanto da minha pessoa?
Quando percebo algo no outro,
é algo que já conheço? Em mim?
Livre arbítrio, o que é em mim? Pratico?
Ética, o que é em mim? Quando não fui ético?
Afeto, o que é em mim? Sou afetuoso com quem
desejo?
O mundo anda enquanto paro?
E o amor, o que é o
amor?
Como descrever o
gosto da banana? E o gozo, pra quem não gozou? E o amor, se só vislumbro?
Desconfio que estou
amando quando desejo para o outro o que, lá no meu profundo, desejo pra mim. Se
é assim o amor, meu amor é nosso amor. Meu amor é como um reflexo. Sou espelho
do que recebo e percebo. Sou amado pelo que ofereço.
Talvez eu saiba o
que o amor não é. Não possuo nem sou possuído. Não limito nem sou limitado. Meu
amor não é excludente. Amo um e uma e amo outros. Amo a mim, amo aqueles
que desejam pra mim o que desejam – lá nos seus profundos – pra si mesmos.
Só amo outro quando
amo a mim. Sou dou o que tenho.
Anos depois, leio
Contardo Caligaris e me identifico: Eu
não tenho ciúme. Se alguém que eu amo me deixa por outro, eu me desespero como
todo mundo. Mas se alguém que eu amo, sei lá, está viajando, continua me
amando, mas tem a oportunidade de se divertir com outro parceiro por um par de
dias ou de semanas, eu fico feliz por ela.
Pergunta
que, sei, só devo fazer ao espelho: que você quer que eu queira, para eu querer?
E o livro?
Alguém já disse que
o escultor, pra realizar sua obra, vai retirando do objeto bruto o que está em
excesso. Constrói pela retirada. Disseram também que escrever é cortar palavras. Tentei. E foram tantos cortes que a
prosa tomou forma de poesia. A poesia, cortada, virou o que? Haicai? Mas se enxuto este que imagino haicai, sobra o silêncio. Agora tento
de novo, cortando menos, na esperança que cada leitor edite. Assim como
acontece comigo, fico de cada leitura somente com o que me toca.
O que
posso me dizer?
Quanto mais maduro, melhor me sinto. Sou centro do meu universo. A
vida é um fluxo variado. Cuido de mim. Meu humor é um indicador. Quanto mais
faço o que quero, melhor pra todos.
Ando cheio de sabedoria. Quando tropeço, duvido. Se atento,
aprendo. Desatento, tropeço de novo...
E o Tao
Te King?
Eu gostaria de ser sábio a ponto de conhecer a mim mesmo. Tão
forte que capaz de me dominar. Rico, rico de viver contente. E terno, eterno,
transcendente da morte.
E sofrimentos?
Eu sofro porque
desejo? Eu desejo porque sinto falta? Minhas faltas onde nasceram? O que eu
tinha que não tenho?
Cinema e vídeo
Na década de 70,
operário de cinema, exerci funções variadas. Como voluntário, no escritório dos
Barreto, atento ao tudo novo, bolei e pratiquei controles administrativos.
Depois, em Perdida, de Carlos Alberto
Prates Correia, aprendi direção de produção. Generoso, Carlos Alberto abriu
portas e janelas. Pratiquei assistência de montagem com Amauri Alves e Eduardo
Escorel, no Guerra Conjugal, de
Joaquim Pedro. Cada corte, muito trabalho manual.
Frequentei anos a
Mapa, produtora de Zelito Viana, desde os tempos da Urca. Na Embrafilme fiquei
à disposição de Roberto Farias e, no setor de rádio e televisão, sob o olhar da
Martha Alencar, dirigi – hoje sei, sem estar preparado – o Coisas Nossas, programa com exibição de documentários veiculado
pela TVE. Lá, por um ou poucos dias, fui assistente de som do Jorge Amado, documentário de Glauber Rocha. Participei também da sua
montagem, também como assistente. Glauber chegava, orientava Carlos Cox – o
montador – e voltava depois. Os neurônios da memória saltitam. Fiquei sem voz
ao dar de cara com Caetano no corredor. E, tão fã, ao invés de me aproximar de
Gil, fotografei.
Tive uma câmera
VHS, daquelas ligadas por um fio à unidade de gravação. Minhas mãos eram muitas
para – simploriamente, apaixonadamente, inocentemente? – produzir e gravar o que me atraia. Cenas familiares, movimentos
e, no campo psi, vivências, simpósios, depoimentos, entrevistas. Com dinheiro
curto, me limitei ao possível. Utilizava copiões – cópias para trabalho, feitas
a partir das fitas originais – para assistir repetidamente o que havia gravado.
Selecionava, roteirizava. Alguns documentários ficaram prontos. E cópias, feitas por empresas especializadas.
A capa, embalagem, distribuição, presenteios e vendas, mão-a-mão apoiado por
amigos. Um tanto assim até hoje.
Sempre me propus
conteúdos atemporais. Compreendi que qualidades técnicas contemporâneas estavam
fora do meu alcance. As formas, as mais simples. Câmera na mão ou fixa. Cortes
secos, fades out e in.
Comprei uma Canon
16mm, emprestei. Roubada no local da filmagem, fui ressarcido em prestações mensais. De
outra vez pedi a um amigo que estava vendendo sua própria câmera que também
vendesse a minha SHVS. Um comprador se interessou, propôs depositar o valor.
Voltou com o recibo do banco, levou a câmera. O cheque depositado era
roubado... Sonhos interrompidos.
Tempo passado,
mergulho na terapia comunitária. Horas e horas de gravação, agora com uma HDV
Canon pequeninha, sugerida pelo Elizeu Ewald, pioneiro em tecnologias virtuais.
Medos semelhantes aos de trinta anos atrás se aproximam de
mim. Mas aprendi que prazos me angustiam... e já não me imponho datas nem
sociedades. Está quase se tornando um prazer, o fazer. Aprendo.
Rico
O que
desejo pra mim é o que desejo pra ti. Eu, aqui, agora no processo de aprender a
estar contente. Rico por viver contente. Este o desejo.
Decisões Indecisas
Gostei da ideia. Decretos pessoais. Avalio
melhor que ninguém meus próprios desejos e viabilidades. Determino a mim o que
faço ou não. Começo pequeno. Hoje fico
mais meia hora em casa pra escrever.
Cumpro a missão da instituição que me contrata
– contribuir pro bem-estar dos menos favorecidos. Coincide com o que desejo, me
alegro: inda me pagam pra trabalhar no que gosto. Tenho este olhar
internalizado como sentimento. Faço o bem, não olho a quem, mesmo fora da hora.
No banho, na cama, no trabalho, na rua, em qualquer lugar – quando relaxo –
fica tudo um tanto mais claro, as soluções se desvendam. Estou tranquilo. Uma
contabilidade cósmica indica justo equilíbrio.
Escolhas
Os custos de controles invadem orçamentos.
Controle significa instrumento de domínio. Controles me enfraquecem. Mas quando
eu gosto do que faço, faço o que gosto, pra que controle?
Imagino-me suprido, desde aquela explosão de
afetos que me gerou. Papai e mamãe se olham e seus olhares são ternura e tesão.
Calmamente se sentem, se tocam, têm o tempo como amigo. Mergulham no barato que
vivem, se babam, se riem, arrepiam. O prazer toma conta, gozam. Passa um
tempo... E lá venho eu, energias misturadas, embrião, parte de cada um.
Cresço cuidado, descubro o mundo, me cuido e
partilho. Desejos e sentimentos vêm e vão. Aprendo transformá-los e a mim, como
cachoeira em luz, ventos em ondas, trovões em matérias. Compreendo lá dentro,
desfaço mal-entendidos, me supro cada buraco em cada momento. Não
carrego vazios. Nada possuo além de mim mesmo. Sou inteiro. Componho o mundo,
sou parte e sou todo. O que percebo fora é o que reconheço porque sou. Não
desejo possuir o que é parte de mim.
Sou também vegetal quando como. E sol quando
me esquento e brilho. E o ar que respiro, a água que bebo. Internalizo e
reflito o olhar, a emoção, o pensamento que recebo.
Produzo o que preciso, supro outros como sou e
fui suprido. Pertenço ao mundo sem ser possuído. Decreto pessoal: sou livre.
Vago
Tudo me leva a crer que o mundo será o mesmo
sem mim. Já meu mundo existe em mim, sou centro do meu universo. Só me resta
viver.
É tão bom estudar
sem ter que fazer provas, escrever despreocupado de notas. Mas como não ferir
aquele a quem minha escrita porventura se refira?
Sentimentos de
tristeza me assaltam se me toco do que fiz no impulso, como ontem, quando
pressionei um jovem mendigo aidético: se
é lá sua terra, se é lá que tem tratamento gratuito, volte pra lá.
Constante no diálogo uma mistura de minha impotência e raiva, atrás do meu
aparente afeto e desprendimento.
Saquei que associar
alegria a castigo me dificulta viver o prazer. Agora todo dia enfrento medos e
culpas. Quando venço, rio, me alegro, gozo.
Outras vezes,
quando transo, cultivo o prazer d’agora, evito o orgasmo. Permanece um quente
no corpo, uma animação sutil, ausência de ânsia, pronto pra outras.
Um tanto tantra. A meta, se existe, é o prazer durante, não o orgasmo ao final.
Um tanto tantra. A meta, se existe, é o prazer durante, não o orgasmo ao final.
Por outro lado, esta
sensação dejavu volta e meia me
lembra do que antevi. Pressinto o que vem. Sinto uma ponta de tristeza quando
com ironia sou chamado de poeta, filósofo, doidão. Sinais que estimulei
defesas, não fui entendido. Sei que o sonhar, o imaginar – mesmo não conscientes
– antecedem em mim cada realização. Meu mundo é feito a partir de meus sonhos,
imaginações. Sonhos podem ser leves. Se pesados, pesadelos. Como escolher
sonhos leves?
Se durmo de barriga
cheia, é batata, pesadelos. Mas com a digestão já tranquila – e a cabeça no
travesseiro, os olhos fechados –, se me volto pra agradáveis lembranças,
imaginações prazerosas, batata!, leves sonhos. Toda noite – só quando
consciente do que faço – escolho.
Perdi minha vida por educação. Verlaine? Algumas vezes leio só passando os olhos, outras tento
entender tudo. Se atento demais, fico tenso, vou e volto, às vezes entendo,
fica ou não fica. Tenho me permitido ler mesmo sem entender tudo. Sinto que
mais que só algo permanece. Salteio páginas de Freud, me atenho ao que me toca.
Passo os olhos em quase tudo que me cai em mãos.
Já não sei de quem
vieram – se de um ou outro, ou desconhecido ou de mim ou de nenhum – estes
entendimentos que já fazem parte de mim. Já folhetos, folheio. E se uma
palavra, uma frase, uma ideia me desperta um sentimento, vem a curiosidade,
leio. E quando me toca, cresço. Dos livros, também, adoro orelhas: às vezes
fico só nelas.
19
Manual de manutenção
Se a vida é uma
escola, qual meu dever de casa? Realizar meus desejos, ser sincero comigo,
respeitar meus sentimentos? E na relação de namoro, casamento?
Hoje uma tristeza
que freia. Só, sinto falta do aconchego, do calor, da doçura. Da calma, do
prazer que acalma. Sinto um desejo difuso, não é claro o que desejo. Tento
pelas bordas, pinço então o que não desejo – ser alvo de ciúmes, hora marcada
pra tesão, ser cobrado pelo que não sou nem me comprometi.
Clareia um pouco,
sei que quero do bom que provei, usufruí. Ser desejado pelo que sou, como
desejo pelo que é. O mel do beijo quente, ativo. O arrepio do olhar, do toque.
A sensação de eternidade, ausência do tempo. A pulsação, em que do nada me
espalho em ondas. Nestes momentos, memória e futuro ausentes, só presente o
presente.
Dados de realidade,
nem eu nem ninguém que conheço tem só as qualidades que me atraem. Sempre uma
mistura de atrações e recusas. Sinto também que não devo, antes de conhecer,
definir a quem procuro. Devo então permanecer atento aos sinais em mim. Os
batimentos do coração, as livres associações, os atos falhos, os sentimentos.
Se quero e me permito despertar variações, já sei, um filme bom, uma festa,
alguns arriscos. Reconheço, dá trabalho me manter vivo como me gosto.
Ao editor
Imaginei um espelho
como capa do livro. E as páginas iniciais brancas, como um caderno novo
disponível pro leitor. O formato, de bolso. Ou aquele que facilita xerox?
Letras de forma e tamanho que facilitem a leitura. Aquele papel meio amarelo
claro. Textos enxutos, conteúdos e estilos variados, mistura de subjetivo e
objetivo. Ora ficção, ora realidade. Entrelinhas que estimulem atenção. Em
algum momento a sugestão: leia aos
poucos, em
momentos calmos. E > é permitido acrescentar, reproduzir e
distribuir para fins humanitários. Um livro como um meu retrato, o meu eu
idealizado.
Imaginei um livro
como movimento. E um leitor que simplesmente leia. Ou – se lhe convier – ao se
identificar, amplie, invente, acrescente e assine, multiplique, distribua, de
acordo com seus desejos e possibilidades.
Gosto muito de uma
regra de ouro, faça ao outro o que deseja
para si.
20
Hoje, já passado
Pedaços
Não sei definir
direitinho meu estado civil. Há momentos em que sou maridão. Feira juntos,
disponível na manutenção da casa, furadeira empunho, retratos na parede, qual
chá hoje? Relatos ao telefone, TV cedinho, só vou se você for, o que você quer pra que eu queira. Canso,
sensação de aprisionamento, de viver uma vida que não é minha. Gota d’água, me
rebelo. Volto pra minha base solitária, repito, invento, reinvento rotinas.
Viro namorado, duas vezes por semana. Cinema, passeio, cada um cuida do que se
propõe, volto aos meus projetos, escrevo, gravo, alguns encontros com amigos.
Em intervalos, sentimentos de solidão.
#
Tudo muda a cada
instante, também sei. Não sei definir com precisão minha profissão. Leio com
frequência. Na cabeceira literatura psi, romances, esporadicamente livros
técnicos, revistas. Jornal, uma vez por semana? Vejo um bom filme, leio algo
que me fica, sei de uma notícia interessável, falo com um e outro, reproduzo,
distribuo, imeio. Penso como rede. Raciocínio inverso, a partir dos objetivos,
planejo de lá pra cá. Há muito tempo tinha vergonha de falar o que pensava.
Terapia, convivência com gente mais resolvida que eu, leituras, dois passos pra
lá, um pra cá, ampliei no meu tempo minhas limitações, comecei a me expressar.
Hoje primo por livres associações, ora foras, ora dentro em cheio. Se me
incomoda o incômodo de outros, tento distinguir o que é meu, o que é de outros.
Sei que me sinto vivo quando vivo o que escolho, o que sou eu.
#
Um ontem, gravei em
Barra do Piraí um encontro de terapia comunitária. Paula, a terapeuta. Praça
principal, gente mais velha, o tema escolhido foi a preocupação com os filhos,
mesmo os já adultos. É um que bebe e fuma, outro que anda de motocicleta, chega
tarde e assim vai. Uma senhora se emociona ao relembrar a recente morte, AVC,
de pessoa próxima. Alguém inicia uma música, abraçam-se em roda, balançam
enquanto cantam, trocam olhares compreensivos, ternos. Um ou outra que
permanecia mudo se expressa, ainda tímida, voz baixa, bota pra fora o que lhe
incomoda. Uns quantos chegaram solitários, partem agora um tanto solidários.
Sexo não tem idade. Sexualidade.
#
Semanas passadas. Vem se acumulando uma
sensação de excesso de compromissos comigo mesmo. Iniciei semana passada o que
imagino uma série de entrevistas. Luiz Soares é um morador de Manguinhos, comunicador
ativo, leva-e-traz informações que beneficiam os que ouvem, nos encontros
comunitários que participa. Já o vi, discreto, atento, em meio a muitos, nos
cantos das telas, em três documentários recentes que assisti.
Segunda por volta das nove nos encontramos
aqui em casa, de frente um para o outro, um em cada cadeira, uma câmera nele,
outra em mim. Fala do que é, do que faz, dos planos. Invertemos, ele me
entrevista, conto o que imagino sou, faço, da terapia comunitária. Trocamos de
cadeira de novo, ele desfia realizações que têm dado certo em comunidades menos
favorecidas, frutos de iniciativas de moradores locais. Aventamos também
entrevistá-los aqui, nas semanas vindouras. Entrego as fitas gravadas, brutas,
para ele. Mostrará para amigos da TV Comunitária – canal fechado da net – com a
intenção de, juntos, editarem e veicularem. Dois dias depois já me informa
encontrou interessados e que em vinte e cinco dias terá resposta.
Anteontem contei para Evandro Ouriques, da
Escola de Comunicação da UFRJ. Combinamos entrevista daqui a duas semanas.
Antes eu já havia comprado alguns equipamentos complementares, alternativos,
baratos: dois rolos de chromakey,
duas luminárias-tipo-panelas de alumínio, lâmpadas fluorescentes e mais umas
coisinhas pra montar um estúdio caseiro aqui no que é meu teto. Busquei dicas
com quem sabe. A câmera dvcam de Michel permanece comigo, Pedro meu filho me
informa dos softwares, Jorge
Rodrigues ternamente se oferece e constrói os materiais que tenho me permitido
aceitar. Como uma sopa de pedras. Sementes de programas de tv?
21
Insights?
Volta e meia meu corpo me
avisa pr’eu me cuidar. Bom menino, quando escuto meu corpo, relaxo sem culpa.
Meu corpo é, às vezes, uma mãe...
Tenho me sentido no limbo. Sabe o que é
limbo? No catecismo, quando perdi minha inocência, aprendi que o limbo é aquele
lugar pra onde vão os anjinhos, as crianças que morrem sem batismo. Lá, do que
entendo, é vazio, é um nada. Meu limbo atual é este não saber quem sou, onde
estou, de onde vim, pr'onde vou, que desejo. Como não sei, permaneço...
Minhas realidades pouco a pouco se enevoam...
e eu gosto. Não sei descrevê-las, tudo um tanto difuso. Sigo a intuição, quase
o impulso, mesmo sabendo que não sei. Tá vendo? - brincadeira - imagino além de
mim, outros. Os objetos têm perdido antigos sentidos de suprirem vazios. Saem
os objetos, ficam os vazios, pelo menos não me engano. E o melhor, tenho me
sentido melhor. Paralelo, o pique corporal diminui, os desejos, a ansiedade
também. Serei o santo que desejei ser quando perdi a inocência no catecismo?
Pois é, sinto que a vida é o
que sinto. Volta e meia me pergunto o que está ao meu alcance... e me
surpreendo com o que posso fazer por mim mesmo. Esta foi mais uma vez em que
perdi outra inocência: se não cuido de mim, quem cuidará? Quando tento olhar
com os olhos de quem me cuidou ou cuida, minha mãe por exemplo, desconfio que o
outro - ela - vive tantas questões pessoais que não conseguiu resolver...
Quando, assim, sinto compaixão por ela, me permito compaixão por mim mesmo. Se
minha mãe foi não perfeita - nem meu pai, meus modelos - como eu?
Aí então me pergunto: o que
está ao meu alcance fazer por mim? Viver contente? Rio, rio, rio... e não sei
por que. Acho que tou no caminho certo. Tudo muito novo,
pra mim, isso de alimentar alegria. Rio de mim? E se rio do outro, no fundo rio
de mim?
22
Ficção, desarrumações
Falo das qualidades
do produto, desperto seu desejo. Omito quanto ganharei de você pelo que agora
lhe vendo. Sou esperto, mais ainda porque lucro muito. E você ainda me valoriza
pelo que acumulo. Deseja ser rico como eu.
Já nem preciso de
tanto. Gasto muito de mim na conservação do que estoco. Nem tenho prestado
atenção nestas contradições que o excesso me provoca. Ser rico dá trabalho.
Fico de olho em outros que agirão como eu se tiverem oportunidade. Gente que
volta e meia muda as regras. Ou transgride. Eu mesmo tomo minhas providências,
quando a lei não é suficiente. Não tenho muitas dúvidas.
Insônia, gastrite,
hipertensão, estas dores é que me atrapalham. E os pesadelos, os sobressaltos?
Não tenho podido usufruir do que possuo. Tanta gente próxima pelo que tenho,
que já nem sei quem me ama pelo que sou. Minha prática em mentir nos negócios é
que me protege um pouco: reconheço logo quem também mente. Mas não tenho amado,
desaprendi reconhecer quem me ama.
Tem também estas
coisas que acontecem e não entendo. Lembro uns pedaços do que sonhei esta
noite. Uma mistura de quente e frio, vendavais, maremotos, calmarias. Túneis,
desertos. Névoas e sol a pino. Ora era eu o ator, ora desconhecidos. Minha
mulher me disse que suei, gritei, chorei e ri. Tinha pela frente uma
encruzilhada quando acordei com o toque dela. Ficou esta dúvida do que fazer
com minha vida. Ai que saudades de minha
inocência.
23
Sensação de juventude
Isto de sensação de
vitalidade, sinto que tem a ver com minha constante tentativa de fazer o que
meu coração diz. Desde que me lembro. Mudanças de rumo, cidade, profissão, um
tanto incompreendido, outro tanto aceito. Agora mesmo, estável na
multiplicidade do que faço, invento, uma recorrente vontade de simplificar o
ser e o fazer. Neste agosto de 2008, crente na criação de um sistema mutante de
comunicação, de um lado ligado numa rede autônoma de agências de informações –
jajá me explico – e de outro, sob o mesmo guarda-chuva, em plena produção de
uma série de classificados sociais em vídeo. Além das Terapias Comunitárias,
rodas práticas e vídeos. Tudo considerando o processo que vai da ideia à
interação, passando pela preparação, produção, gravação, edição, divulgação,
veiculação, retorno. Considerando os recursos que disponho ou tenho acesso.
Tudo muito singelo.
Sou uma peça de
movimentos de pessoas com desejos comuns. Funciono a partir da participação de
quem deseja e toma iniciativa de contribuir com o que escolhe. Tudo muito
aparentemente confuso como qualquer movimento, onde equilíbrios se dão de
maneira dinâmica, em espiral, em ondas que vêm e vão, desaparecem e renascem.
Caos que antecede ordem que antecede caos. Movimento talvez semelhante ao que
compreendo como tese, antítese, síntese. Sem metas quantificadas, só objetivos
difusos, uma vez que, se sei, talvez saiba um pouco do que não sei, do que não
desejo. Aspiro este bem-estar que volta e meia sinto, indefinível como o gosto
do pequi e como a sensação que me inclui no todo. Assim, nestes momentos,
quando desejo pra mim, desejo pra todos. Que não são todos, é todo, é um,
também eu.
Os produtos
carregam as intenções, são partes dos gestos. Parece confuso e é, enquanto não
se torna claro, o que depende de quem vê. Também assim, cada olhar determina a
realidade que lhe corresponde. Até onde agora enxergo, a aceitação de mim como
sou – com as diversidades dos meus instantes – pode ser caminho para a
aceitação do outro? Este outro que faz parte do todo do qual também participo.
Se me aceito, tendo aceitar ao outro.
A livre associação
me leva à dica de Gentileza, o homem > Gentileza gera Gentileza.
Mas sou muito
prático. Quando relaxo e me vêm ideias, se uma ideia me toca, fica. Se desejo,
raciocínio ao inverso. Relaciono o que é necessário para realizar o que agora é
desejo. Decupo em tarefas o que me leva à sua realização. Abro colunas numa
tabela. Além das tarefas, avento os tempos, os custos, quem poderia se
interessar por realizar uma e outra, anoto observações. Dá mais certo quando trabalho
partes do meu ego, já que lá mais fundo permanece um orgulho silencioso pelo
que contribuí.
Domingo chuvoso,
escolho agora entre ler Caetano Veloso – Verdade
Tropical – e me mover para rever Pedro, meu filho. Bom problema esta
escolha, ambos me surpreendem, confortam, alegram.
24
Anotações
0
Em algum momento passado, remoto e recente,
cada letra, espaço, palavra, frase daqui. Em algum momento presente, já no
futuro, mistura de tempos.
01
Quando escrevo, me organizo. Lembro o que
sinto. Expresso meu mundo. Aprendo a me compreender, me aceitar. Facilita
aceitar o outro, diferente de mim e um tanto semelhante. Escrever é um risco.
Arrisco.
02
Wilhelm
Reich me ajudou a eu próprio me compreender, me aceitar, me desenvolver. O Combate Sexual da Juventude me ajudou
desculpabilizar-me em relação ao sexo. A Função
do Orgasmo me ensina como pode ser o processo. A Análise do Carater me dá métodos de me cuidar. Tudo, naturalmente,
do jeito que entendo a cada releitura.
03
A cartas trocadas por
Ferenczi e Freud me ensinam da amizade. Em cada consideração, algo que um
oferece ao outro e a mim.
04
Freud se
humaniza quando se expõe. Isto de inconsciente e consciente me faz pesquisador
de mim mesmo. Quanto mundo reconheço em mim.
05
Compreendi
melhor Laing, a pessoa, no seu Fatos da
Vida. Sua dedicação ao acolhimento do outro faz sentido com o que ele
próprio viveu. Antes ele tinha me tocado com o Laços. Ele fala de mim quando fala do outro. Os chamados loucos têm
um tanto de mim. Eu tenho um tanto dos loucos. Acredito que como todos, ou
quase todos, nós.
06
Winnicott dedicou a vida à
pediatria e à psicanálise. Tudo Começa em
Casa é composto por palestras que fez durante a vida. Cada capítulo se
completa em si mesmo. É um livro póstumo. Mamãe já morreu, mas hoje aprendo a
melhor compreendê-la e amá-la com o que Winnicott me oferece.
A comunicação
permeia todo o fazer. Sua insuficiência
interfere nas relações. A partir daqui interfere em tudo. A comunicação
se dá com o outro e, indo fundo, consigo mesmo. O pensamento já é mensagem.
Quando há realização de desejo de compartilhamento
de informações, as comunicações se iniciam. Quando eu próprio entendo o que
comunico – e o outro também – as comunicações se animam. Quando eu entendo o
que o outro me comunica, as comunicações se completam.
07
Bubber me
ensinou que quando vejo uma árvore e percebo suas características – o caule, as
folhas, as raízes, as flores... – a árvore está fora de mim, é um isto. Mas quando eu sinto a árvore, a
árvore sou eu, somos eu-tu. Eu-tu é um livro de Bubber.
08
Tostão me
surpreende quando escreve sobre futebol. Ali o futebol representa a vida.
Tostão bate bola com insights.
09
Ludemir
mergulha onde vive e relata. Conheço um pouco de favela também através do que
escreve. Sou um tanto favelado, somos semelhantes pelos sentimentos.
10
Outro
tanto de favela conheço através d’As Cores
de Acari, de Marcos Alvito. Aparentes pobrezas escondem riquezas. Lembro
Adalberto de Paula Barreto, que, em relação à Europa, fala dos favelados
existenciais. Lá, riquezas aparentes escondem pobrezas emocionais. Em muito,
desconfio, favelas e europas se complementam. Talvez aprendam uns com outros.
Só questão de desejos e gestos.
11
Em Por Uma Pedagogia da Pergunta, Antonio
Faundez conversa com Paulo Freire. Diz que a cultura não é apenas uma
manifestação artística ou intelectual que se expressa através do pensamento. A
cultura se manifesta nos gestos mais simples do cotidiano. Cultura é comer de
maneira diferente, é relacionar-se com o outro de maneira diferente.
12
Mirian Goldenberg, na Folha de SP, diz que
seus “...pesquisados apontam três
ingredientes no casamento: amor, paixão e amizade. O amor aparece como um
sentimento amplo e difícil de ser definido. É diferente da paixão, inicial e
provisória, que se transforma em amor ou acaba.”.
13
Procuro me conhecer? Atento, tento, ao
sentimento, ao pensamento, à palavra, à obra?
14
David
Bornstein, em Como Mudar o Mundo, estimula quem tem ideias inovadoras
focadas no bem-estar coletivo.
15
Já Charles
Feitosa, em Explicando Filosofia com Arte, trata de questões profundas de
uma maneira tão acessível... e quando a gente menos espera se vê refletindo
sobre o todo, o nada, o essencial.
16
Gosto da superfície, de orelhas de livros,
mas eventualmente mergulho, me aproximo do meu próprio inconsciente, do
inconsciente de outros, do inconsciente coletivo, que está aqui e ali e não sei
direito o que é. Carl Gustav Jung me ajuda, permanece vivo. Tanto através de
Nise da Silveira, que escreveu Jung, Vida
e Obra, quanto através se suas Memórias,
Sonhos e Reflexões e d’O Homem e Seus Símbolos, finalizado poucos dias antes de sua
morte. Jung dedicou a vida à compreensão dos sonhos, dos mundos interiores.
17
Thomas Szasz me ensinou a cuidar de tratos.
Nem me lembro como, mas ficou em mim um tanto de sua A Ética da Psicanálise.
18
Eu era pobre e não sabia. Na minha infância,
dentro de mim, não soube de faltas até o momento em que, na cidade maior, vi a
vitrine. Desejei o que não tinha. E por muitas vezes me angustiei por não me
suprir das novas necessidades criadas.
Demorei meia vida para compreender que o que
aparentemente possuo é que me possui. O carro me pede manutenção, taxas,
estacionamento, gasolina, óleo. O cachorro solicita atenção, alimentação,
passeios, cuidados. Minhas posses me aprisionam.
19
Surpreendi-me com o
que Freud diz, em cartas, a Ana, sua filha. Meus preconceitos o colocavam
transcendendo o humano. E ele se mostra gente um tanto como a gente.
20
Sonhei uma escola de desenvolvimento.
Ela se concretiza onde se realizam aprendizados de desenvolvimento integral – econômico,
emocional e mais. Aprendizes interagem com mestres onde os conhecimentos estão.
Mestres, naturalmente - nos momentos que também aprendem - são aprendizes.
Aprendizes, naturalmente - nos momentos que ensinam - se tornam mestres.
21
Gentileza gera
gentileza. Aprendo toda hora: quando sou gentil, quando são comigo gentis.
22
Anotações para um manifesto em favor de informações
saudáveis: todo
dia, ou quase, nas bancas, os mesmos jornais diferentes, as mesmas notícias
semelhantes entre si. Isto aqui no Brasil. Isto na Europa. Talvez em todo o
mundo. Como fontes, três ou quatro ou poucas mais agências de notícias, quando
não uma só. CNN, Reuters, UPI, France Presse... Aqui, agências O Globo, Folha
de São Paulo... Em que posso contribuir para melhorar, diversificar visões de
mundo?
23
Passado recente, 2009: eu, sessenta e dois
anos e nove meses. O horizonte mais perto. Cálculo otimista, sessenta por cento
da vida já vivida. A intenção, há alguns meses, era só gravar vídeos e
escrever. Tenho mais gravado que escrito. Giro em torno de encontros de redes
comunitárias e de rodas de terapia comunitária. Gravei, com apoio de muitos,
muitos destes encontros. Caetano Dable transcreveu um tanto. Pedro Sarmento
criou vinhetas. Cineastas amigos editam – Elizeu Ewald, Félix Ferreira, Katty
Cuel, Alberto Mejia, Roberto Pontes, Phillip Johnston, Chris Agnese, Thiago
Catarino, Tainá Diniz – um vídeo cada um de cada vez. Pedro realiza o design do
DVD. Mejia e Phillip cuidam da veiculação na TV Comunitária do Rio de Janeiro.
Rudá Almeida inicia o Youtube. Oscar
Pereira, o Oscardigital, complementa
e amplia pro Videolog. Glória, Jorge dão
força. Russo, Eliany cuidam da casa. Combinamos cuidar das falas e atos editados
como gostamos que cuidem de nós. Evitamos constrangimentos, procuramos contribuir
para o gosto de cada um por si mesmo. Os custos são limitados aos recursos
disponíveis. Há intenção de que os vídeos possam ser úteis em qualquer época –
são atemporais.
O presente está assim. Já prontos o Terapia
Comunitária – Conversa com Adalberto de Paula Barreto. E os Classificados
Sociais de São Gonçalo, Tijuca, Ramos, São João de Meriti, Niterói, Madureira,
Vila Aliança, Expo Brasil. Os Livre Pensar Social relativos ao Desenvolvimento
Local e à Sociedade que Desejo. Em edição o Rede Comunitária de Cultura de
Minas Gerais, o Rede de Cultura de Santa Catarina, os Classificados Santa
Luzia, o Contribuições para a Plataforma Urbana do UNICEF, o Vila Aliança, o
Terapia Comunitária – 4 Varas. Auto-Estima e o Retalhos, com depoimentos de
terapeutas. Os custos integrais dos Terapia são meus. O Sesc contribui para a
edição dos relativos a Redes e Livre Pensar. Tudo singelo. Mais que
documentários eu chamaria de falas-úteis.
24
Depois que papai e mamãe morreram, tenho sido
meu próprio filho.
25
2006, 3 ideias
possíveis.
a) Agências de Notícias: textos simples, periódicos ou não, atemporais, são
disponibilizados-oferecidos a veículos de comunicação - jornais, revistas,
rádios, tvs - de todo o país. Em médio prazo, também a outros países de língua
portuguesa e espanhola. Temas, como exemplos, sobre comportamento,
desenvolvimento integral do ser humano, boas notícias, brincadeiras passo a
passo, provocações de insights. E
mais, textos instigantes de reflexão,
destinados especificamente aos mais variados públicos: pais, crianças,
professores, empresários, babás, políticos, funcionários públicos,
profissionais de saúde...
Podem ser formatados,
ou não. Se sim, por exemplo, em cadernos-tipo-cultura, com espaços para inserções
publicitárias locais. Podem, ou não, ter um ético patrocinador-cliente que
arque com as despesas básicas e, em contrapartida, tenha sua inserção
publicitária ética presente nos veículos que aceitem os produtos intelectuais
oferecidos.
b)
BRincadeiras: saem brinquedos, entram brincadeiras. Novas, antigas. Jogos
cooperativos, integradores, por faixas etárias e intergeracionais.
Um
primeiro dvd com, digamos, 60
minutos, atemporal, com 30 brincadeiras apresentadas de forma que quem vê
aprende e entra e faz.
400
mil cópias, destinadas a cerca de 400
mil escolas hoje existentes no Brasil. Oferecidas por uma instituição, Petrobrás Distribuidora, por exemplo.
Parceria com os Correios, que
entregará o dvd em cada escola. Já disponível, pesquisa bruta com centenas de brincadeiras.
c)
Povo da Rua: redes de interessados em se aproximar,
cuidar de moradores de rua,
considerando, cada um, seu desejo-competência-possibilidade. Da higiene à
alimentação, da educação à transformação. A metodologia dos encontros pode ser
semelhante à das redes comunitárias: em roda, o que cada um oferece, o que cada
um procura. É bom saber o que um morador de rua deseja. Se deseja açúcar, quem
sabe se aceite o mel que não conhecia.
26
Como
limite, internalizo uma regra de ouro: não
faço a outro o que não desejo me façam.
27
Sou
melhor escutado quando falo do que vivo. Sou menos escutado quando falo o que
outro deve ser, fazer.
28
Tenho
tido o maior cuidado com minhas expectativas, especialmente em relação a outro.
Se não falo da minha expectativa para o outro, como o outro saberá da
expectativa que tenho em relação a ele?
29
O que em mim dá certo? O que
posso melhorar?
30
Filme bom é aquele que assisto e
saio melhor que entrei. Quando entro um e saio outro. Pra quem gosta de emoções: As
Canções, de Eduardo Coutinho. E A
Música Segundo Tom Jobim, de Nelson Pereira dos Santos e Dora Jobim. E Habemus Papam, de Nino Moretti. E Uma Longa Viagem, de Lúcia Murat. E Paralelo 10, de Sílvio Da-rin. Tantos
filmes que me fizeram bem...
31
É orgulho, eu sei.
Quando alguém na rua me escolhe pra pedir um apoio, imagino que viu qualidades
em mim que eu próprio não percebo. Aprendi com um amigo a facilitar a vida de
artistas que, também na rua, facilitam a minha com sua arte.
32
Em terapia, nos anos 70, Romel me
sugeriu: perceba o que sente quando a
transa finda. E como seu corpo se
comporta. Descobri que, junto com culpa, minha pélvis se contraia, impedia
o fluxo normal de energia, de sangue. Neste ambiente fragilizado qualquer
bichinho fazia a festa. Gonococos, estafilococos se alternavam. Estas doenças
venéreas sumiram da minha vida quando passei a cuidar dos meus medos, culpas e
corpo.
33
Desconfio que roupas –
especialmente as peças íntimas – feitas com materiais inorgânicos dificultam a
circulação de energia, fragilizam defesas do organismo. Falas no vídeo Energia da Vida contribuem para este
entendimento.
34
Cada unidade de trabalho incorpora
procedimentos administrativos próprios. Algumas criam soluções criativas e
desburocratizadoras. Outras ainda não.
Trocas de know-how informais são
riscos de soluções desconhecidas.
35
Quem
participa dos frutos do seu trabalho cuida do trabalho como se fosse seu. E é.
36
Ser ético
é um estado de espírito?
37
A existência de uma instituição pública só é
possível pelo que já tem: base política
que possibilita base financeira, base física e, o próprio fim e meio, base humana.
Quando a ética está presente, estas
estruturas possibilitam um cotidiano que inclui cuidados com os recursos, com os conteúdos, com os públicos
e com quem cuida. Todos
ganham.
38
Conteúdos
inadequados estimulam
inclusões sociais subordinadas a culturas
retrógradas. Vide, por exemplo, grande parte dos programas de TV.
39
De outubro de 2000 a maio de 2011 trabalhei
no Sesc Rio. Em momentos inseguros, me pautei pela sua missão, vigente quando fui contratado. E com a qual me
identifiquei.
Na tentativa de manter-me saudável, procurei a
todo momento separar minha loucura da do outro. Um tanto porque o que faz
sentir-me ameaçado – e posso por isto adoecer – é ter minha vida pautada por
quem não me conhece e nem eu próprio conheço.
Escrevo isto, confesso, para manter-me vivo.
Sei que quando a boca cala, o corpo fala.
E quando a boca fala, o corpo sara.
40
Agosto 2009. Ahora, além de las redes
comunitarias, las terapias comunitarias. Gravo algumas entrevistas, reuniões...
e uma ou outra vai pro youtube e pra canais comunitários de tv. Uma ideia anda
me rondando, estamos devagarzinho experimentando. Michel tem viajado bastante
pelo mundo, grupos com homens especialmente... Auto-hemo volta e meia faço: o
movimento se espalha pelo mundo. Já há no youtube versão em espanhol. E
logologo em inglês e esperanto. Tudo por iniciativa de um e outro que tem se
beneficiado.
No meio destes ventos, intuitivamente vou me
organizando pra não ter mais agenda. É o que desejo, acordar e descobrir o que
fazer ou não. Saúde boa, um pouco de ioga diária, alimentação mais pra leve.
Filmes, mais as comédias. Enfim, vida boa...
41
Do que me lembro, por orientação e
insistência do meu querido dentista, tomei alguns comprimidos quando do
implante de quatro dos meus dentes. Mas, fora isto, há mais de 10 anos não uso
remédio alopático, de farmácia. Em casa, nem mercúrio cromo. Gripe, passa
longe. Dor de cabeça, estresse, pânico... só sei de escutar. Exceção, A Maravilha Curativa tenho em casa.
De um lado, procuro separar as loucuras que
são minhas das loucuras que são do outro. Ou as responsabilidades que são
minhas, das que são de outros. Já não carrego nos ombros o que independe de
mim. Sou só solidário.
De outro, nos últimos anos, uns meses sim,
outros não, reforço minha imunidade ao retirar um pouco de sangue de minha veia
e aplicar em
meus músculos. Nenhuma contraindicação. Só saúde. É a auto-hemoterapia.
42
Me interesso pela
articulação de uma rede de veiculação de informações estimuladoras de
crescimento emocional. Tenho, na verdade, visto como folhas em branco de caderno
novo estas oportunidades que, à primeira vista, parecem problemas...
43
Estive em Vila Aliança ontem de novo.
Impressionantes os helicópteros blindados sobrevoando a comunidade, enquanto
embaixo viaturas da polícia e homens a pé buscavam seus alvos. Doze carros da
imprensa acompanhavam a invasão. O morador mais próximo: lá vão os urubus.
Nossa reunião de planejamento de
Desenvolvimento Local de Vila Aliança acontecia paralela e, conforme o local dos
confrontos mudava, mudávamos de sala. Sei que não sou de heroísmos, nem
intenciono. Mas tudo isto reforça em mim o valor do que fazemos, cuidando das
plantinhas aqui dentro e lá fora. Mas aprendi que só posso dar o que tenho...
44
Julho de 2011. Imagino. Cada encontro como
uma página em branco. Confesso que – mesmo cuidando das minhas expectativas –
imagino cada um de nós fazendo espontaneamente o que está ao próprio alcance.
Imagino cada um selecionando o melhor dos
conteúdos que deseja comunicar ao mundo. Imagino este conteúdo sintetizado, em
respeito à inteligência e ao tempo seu e dos leitores. Imagino este conteúdo
chegando a cada um de nós, a partir da iniciativa de quem cuidou de sua
qualidade integral.
Imagino agora cada um de nós compartilhando
este conteúdo com quem poderá dele se beneficiar. Imagino cada novo leitor se
beneficiando desta informação que lhe chega através de cada um de nós.
Imagino este leitor sendo agora um de nós.
Imagino que também ele, como cada um de nós, selecionará o melhor dos conteúdos
para compartilhar com o mundo.
Imagino que somos agora – cada um e todos que
assim desejem – uma agência individual-independente de inFormações.
Imagino eu, você, nós enlevados com o que
sentimos ao aprender estas novas qualidades que eu, você, nós interativamente
nos compartilhamos.
Imagino isto já.
45
O texto Visão
de Mundo é o reconhecimento do meu eu. À procura de visões parceiras,
compartilhei aleatoriamente no início: xeroquei, email-ei. Visão de Mundo foi, no momento em que escrevi, meu espelho. Hoje
imagino minha visão ampliada.
O texto Redes
Humanitárias Comunitárias teve a intenção de sistematizar, do meu jeito, a
metodologia que por acaso criei. Estimulado pelos resultados de sua aplicação
em Ramos – lá com o apoio essencial da prática da assistente social Lídia Nobre
– me aproximei de Gilberto Fugimoto, responsável pela Assessoria de Projetos
Comunitários. Gilberto, estudioso de redes, acolheu a mim e à metodologia e,
juntos com cada colega que se animou, ampliamos o campo de atuação.
46
Sobre redes. Encontros de Redes Comunitárias acontecem periodicamente em unidades
operacionais do Sesc Rio. Uma rede
de artistas de rua se expande e já abrange quase todos os estados do Brasil. Em Minas, também recriando a metodologia que utilizamos, nasceu a Rede
Comunitária de Cultura.
Em Vila
Aliança, em Bangu, no Rio, projetos estão sendo realizados a partir da
união de recursos – humanos, materiais, financeiros, espirituais – que
encontros de pessoas e instituições facilitam. Inclusive um Fórum
de Desenvolvimento Comunitário. É a inteligência coletiva em funcionamento.
Não sei de outros encontros – utilizando
metodologias de redes – que estejam sendo realizados em outros territórios. Ou
focados em temas específicos.
Realizamos vídeo-registros de encontros de rede realizados em Minas, Vila Aliança, Cuiabá, São João do Meriti,
Niterói, São Gonçalo. E, além de Santa Luzia, no centro do Rio, nos bairros de
Ramos, Tijuca, Centro, Madureira, Engenho de Dentro... Outros registros
em vídeos, ainda sobre redes, de palestra de Augusto de Franco e conversa entre
Cássio Martinho, Célia Schlithler,
Gilberto Fugimoto e eu.
Também fizemos vídeos que documentam um tanto
o que vem acontecendo no Quilombo São José, em Valença. E
sobre o Fado de Quissamã. E sobre a Ilha Grande. E sobre o Candomblé. E sobre a Auto-hemoterapia. E sobre psicoterapias e terapia comunitária...
Ao olhar para trás, tenho prazer. Compartilho
o que aprendi. A difusão do que lhe toca está ao alcance e depende da
iniciativa de cada um, a partir do seu desejo: http://luizsarmento.blogspot.com.br/
47
Tenho dúvidas se me
empenho agora na divulgação de algo. Divulgar que texto? Seria um manifesto?
Qual o objetivo da divulgação: esclarecer a quem deseje? Gerar movimento em
defesa da auto-hemoterapia e do Dr. Luiz Moura?
É o momento de valorizarmos decisões do CFM -
Conselho sobre o qual tenho dúvidas das intenções e qualidade? Seria focado na
auto-hemoterapia ou no Dr. Luiz Moura? Dr. Luiz deseja este movimento em seu
favor?
O que penso neste momento é na necessidade de
definir objetivos claros, em favor dos quais nos mobilizaríamos e
estimularíamos movimentos...
Talvez seja necessária esta clareza de
objetivos – e um texto que descreva o que objetivamos, texto de preferência
conciso e também claro e objetivo. Assim, se entrarmos em movimento, entraremos
com clareza de finalidade.
Como vejo, tenho dúvidas. Posso contribuir,
mas neste momento estou sem pique-motivação para me envolver profundamente.
Eu normalmente não lutaria contra o CFM. Eu
não o considero competente para decidir sobre minha vida. Focaria, por exemplo,
nos resultados positivos da auto-hemoterapia... e dirigiria as informações mais
para as pessoas que necessitam do que para as instituições que se negam
ouvir-nos.
48
Sobre o julgamento do Dr Luiz Moura no CFM. Aprendi
que só consigo comunicar-me com quem me escuta. E vice versa.
Entendo que não ouvem, se órgãos que opinam
(como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA ou o Conselho Federal
de Medicina – CFM) se recusam a tomar conhecimento de pesquisas recentes – como
a do Dr. Flávio Alves Lara, a do Dr. João Veiga, a da Telma Geovanini – e de pesquisas
anteriores, como a do Dr. Jesse Teixeira.
Se, além disto, estes mesmos órgãos se
recusam a considerar o que a população beneficiada fala com suas práticas e
resultados, entendo que estes órgãos públicos falham.
Vejo aqui um estímulo para que eu próprio
decida sobre minha saúde e faça por ela o que percebo como melhor. A autonomia
que me permito, desejo a cada um que a deseje.
Por outro lado, hoje acredito que mudanças se
dão, muitas vezes, uma geração depois.
Acupuntura, homeopatia demoraram muitos anos
para serem aceitas formalmente, no Brasil, como medicinas. E olha que
homeopatia tem 200 anos e a acupuntura cerca de 5.000. E a medicina ayurvédica,
mais antiga ainda? E as medicinas indígenas, africanas, da Oceania e de outros
pedaços do mundo?
Imagino que há muitas outras descobertas e
invenções que podem facilitar nossas vidas – na área da saúde e em outras áreas
– e que não chegam a nosso conhecimento.
Mesmo assim percebo que pouco a pouco a
auto-hemoterapia ganha espaço.
Daí esta sensação boa que estamos no caminho
certo, ao fazermos cada um o que deseja e que está ao próprio alcance. E divulgarmos
o que percebemos como bom para nós mesmos.
Até há pouco fui o tempo todo cartesiano.
Isto ou aquilo. Aprendi com um
amigo mais velho – 90 anos – que facilita quando é isto e aquilo. Assim se somam iniciativas.
Re-escrevo isto estimulado pela mobilização em defesa de Dr. Luiz
Moura e da auto-hemoterapia. Este movimento todo, espontâneo, tem trazido
alegrias pra tantos de nós...
49
Dúvidas. Que nome dar a este
livro? Passou pela cabeça:
Título com. Minha vida é
cada canal que clico - escolho um tanto quem sou. Outros escritos. Não sou eu que tenho os objetos, os objetos é que me têm.
Meu umbigo. Ideias, desejos & movimentos...
Hoje, já passado. Perguntas que me faço. Livre pensar. Um quase nada de
quase tudo. Vários eu. Talvez de interesse. Palavras à procura de imagens. Palavras
à procura de sentimentos. Letras à procura de músicas. Se sinto, se penso, que
faço?. Redes, ideias & movimentos...
E mais:
O que está ao meu alcance. Subjetivo?. Saiba+. Aposentado. Cidadão do
mundo. O que vai pela cabeça. Meu lugar no mundo. Quem lava minha roupa? Gavetas
na memória. Novidades e repetições. Falhas memórias.
50
Ideias aqui expostas podem ser utilizadas
livremente para fins humanitários. Naturalmente só posso oferecer o que está ao
meu alcance, ideias que sejam consideradas minhas, se é que prevalece isto de
propriedade de ideias.
51
Hoje
me sinto um cidadão do mundo.
52
Cheguei em Brasília em 1965. Lembro – a
memória pode ser falha – duzentos e tantos professores foram mandados embora da
Universidade de Brasília. Uma greve longa já no primeiro ano de faculdade.
Morei em casa pública ocupada por nós estudantes. Um mundo novo, esta cidade
nova, com gente de todos os lugares. Uma vida juvenil, agitada. Zona boêmia só
fora do Distrito Federal, era a lei. Um passo além da fronteira, uma pequena
vila com prostitutas. Na minha solidão, uma garrafa de Martini debaixo do
braço, em finais de semana, numa aventura, pé na estrada, pegava caronas. Lá
quase implorava pelos favores gratuitos de quem vendia o prazer. Quando
acolhido, um paraíso neste oásis de solidão.
Joguei o que não tinha, perdia minhas mesadas
mensalmente no carteado. Só trinta anos passados vim saber que talvez houvesse
roubo no jogo. Parei quando, pra pagar o que perdi e não tinha, comprei à
prestação um jogo de pneus pro carro de quem ganhou.
Em casa chegamos a fazer o jogo da garrafa.
Em roda, uma garrafa era girada no centro. Quando parava, a boca apontava quem
deveria tirar uma peça de roupa.
Uma fome danada, uma vez comemos de nos
fartar numa pizzaria almejada. Sobrou pra mim correr por último. Sorte que
estava com botas. Garçons atrás, me enfiei no mato. Brasília tinha mato.
Uma boa moça – Batalhão foi o apelido
agregado ao nome – nos acolhia em seus braços com carinho. Num mato, um amigo
se alegrou com seus gemidos. Findo o amor, era um espinho o motivo dos ais.
Que bom antes da aula, cedinho, ter dinheiro
pra comer 7 pães com manteiga com café-com-leite.
Que xato, ao voltar pra casa – já morando em
alojamento no campus – ser obrigado a marchar feito barata tonta. Eram os
soldados se divertindo. A UnB toda rodeada por militares armados, um a cada
poucos metros, em todo o seu perímetro.
Fui preso uma vez, junto com duas dezenas de
colegas, como represália pela retenção – sequestro, aprisionamento? – de um
policial por estudantes ativos. Foi um dia só. Na prisão, quem pedia pra fazer
necessidades voltada apanhado. Morri de medo. Só passei a ver militares com
outros olhos quando, em Moçambique, vi soldados conversando naturalmente de
mãos dadas com civis.
53
Dr
Fritz colocava critério: esta história
que você vai me contar sobre o Pedro, faz bem a mim? E a Pedro? E a você? Se
não faz bem, não me conte.
54
Dou razão a Cacilda Becker: só tenho tempo para lutar a favor.
55
E esta vontade de acordar sem ter agenda, a
vida atenta como um laissez-faire?
56
O que são erros pra um, talvez acertos pra
outro?
57
Quando minha auto-estima está
presente, lembro a sorte de quem me tem.
58
Dentro
do fogo, só vejo chama. Se saio fora, vejo o incêndio. Se apago o fogo, sobram
cinzas, embaixo brasas. Se sopra outro vento, voltam as chamas. Se aprendo, já
não me queimo.
59
Palestra boa é aquela que vira
conversa e podemos todos participar. Uma fala de 10 minutos já é suficiente
para apresentar conteúdos, ideias. E o tempo que nos resta aproveitamos bem,
conversamos sobre o que realmente nos interessa, a cada um dos presentes. Tudo
mutável, inclusive regras, como é a vida.
60
Somos todos inteligentes. Uns têm
facilidade com matemática, outros com línguas, uns são generalistas, outros
cientistas. Alguns têm inteligência concreta, outros abstrata. Uns são
inteligentes nas emoções, outros são duros, duros. Inteligência mesmo, sinto, exercito
quando utilizo minha inteligência para facilitar o estar contente.
61
Uma fala, já sei, pode ser fora
de ordem. Cada um edita, coloca em sua própria ordem, de acordo com suas
prioridades conscientes... ou não.
62
E se em encontros cada um se
apresentasse, eu também, expressando o que é - ou sente que é -, não o que faz?
Esta aprendi com Michel.
63
Sonhos, ideias, reflexões antecedem ações.
Caos antecede ordenação. O emocional como pano de fundo. Atos falhos não
falham. Insights abrem outras
janelas.
64
Reflexões. Dou o livro que gosto, não o que o
outro deseja. Só dá quem tem. Se não me permito, a outros inibo.
65
Pra facilitar minha
prática, não me canso de lembrar o dito que penso ser de Tom Jobim: democracia é muito bom. Lá em casa pratico
todo dia.
66
Que sociedade
desejo? Quando converso sobre isto com quem intenciono ser parceiro, fico impressionado
como somos diferentes. Foco no que somos e no que desejamos em comum.
67
Do que entendi, eficiência se
refere a quando faço bem o que me proponho. Eficácia é quando há resultados.
Efetividade é quando os resultados permanecem, frutificam.
68
Facilita uma parceria, quando
descobrimos interesses comuns. A imagem que vem: sabe o símbolo olímpico,
composto por aquelas argolas entrelaçadas? Imagine que parte de uma argola –
que me representa – superpõe parte de outra argola, que representa você. Esta
área que é comum às duas argolas representa o que temos em comum. Já a parceria
acontecerá em função da iniciativa de cada um de nós e do nosso consenso.
69
Cada um de nós tem algo a
oferecer e procura por algo. Há pessoas que oferecem o que outros procuram e vice
versa. Questão agora de se encontrarem. Assim se formam casais, comunidades,
sociedades, redes.
70
Quando chego na hora ao encontro,
estou dizendo: eu te respeito, eu me
respeito. Quando chego atrasado, desconfio de mim: será que me sinto superior ao outro? E, se sim, que complexo de
inferioridade escondo neste aparente sentimento de superioridade?
71
Quando falo e não escuto, é que
não quero ouvir? Neste momento, estou fechado em mim? Não me interessa o outro?
72
Em algum momento, quando eu
ainda no Sesc, escrevi como lembrança:
Nestes momentos de
incertezas, desconfio que a necessidade que sinto de ser solidário é a
contrapartida que ofereço por necessitar de solidariedade. Tudo isto
relacionado ao medo de deixar o Sesc, onde, identificado com sua missão, ganho
para trabalhar em benefício de menos favorecidos.
Quem não conhece o
que faço, não valoriza o que faço, não me reconhece. E vice versa, uma vez que
também eu não conheço o que fazem os que se propõem pautar minha vida e as
vidas dos que aqui trabalham. Nesta crise, opto por me orientar pelo meu senso
ético e pela missão original da instituição. Procuro prestar serviços em favor
do público que, direta ou indiretamente, me remunera para dele cuidar.
Dói entrar no espaço
do Sesc-Senac Flamengo e ver um evento caro, sobre Coco Chanel, sendo preparado
para um público limitado. Como a do Senac, a missão original do Sesc se
dissolve. E o foco já não é o seu público, os comerciários e seus dependentes.
Freio o impulso de demitir-me quando faço as contas mensais da sobrevivência.
Decido então continuar aplicando meu tempo de trabalho no que meu senso ético
me orienta. Minhas ações se guiam pela missão original ampliada: utilizando o
que está ao meu alcance, no meu campo de poder, cuido em contribuir para o bem-estar
dos comerciários, seus dependentes. E das comunidades populares onde vive
grande parte das suas famílias.
Assisti à
transformação da Globo Vídeo num departamento da Som Livre. Ali a intenção era
claramente diminuir custos, racionalizar negócios. Ali, nas empresas Globo, a
ideologia era a do lucro.
Já o Sesc objetiva
lucro social. Não entendo quando agora se fala do Sesc como empresa, quando ações priorizam a visibilidade mais que os
conteúdos.
73
Rede,
vivência agora. Desafio: saber e
expressar objetivamente o que faz, procura, o que oferece. Já sabe? Escreva em
mínimas linhas. Depois, num minuto, na fala, sintetize na essência: o que faço, o que ofereço, o que procuro.
Imagine
encontros de pessoas: interessadas num mesmo tema. Ou habitantes de um mesmo
território. Cada um – entre aqueles que desejam – fala objetivamente o que
oferece, o que procura. Isto num tempo limitado, combinado em função do número
de pessoas e do horário de término do encontro. Todos sabem agora de cada um
dos que falaram. Recreio – um café, um lanche? Cada um que deseja conversa com
quem deseja, reflete, define, articula parcerias. Perde-se o controle, as redes
se espalham.
74
Aqui, a questão básica é
comunicação. Como saber do outro, que faço para outros saberem de mim? Num
mundo onde cada um, eu falo por mim, sente necessidade de se expressar. Eu
também quero falar. Estamos na fase da fala?
75
Fórum ou palestra. Interatividade ou atividade? Palco tipo italiano ou arena? Roda ou
auditório? Epa! Se substituo neste parágrafo o ou por o e...
de maneira que as comunicações se deem, cada um do seu jeito. O que importa é o
processo como resultado. E resultado bom é quando me sinto bem e os outros
também.
76
Das
coisas objetivas algo sei. Como cada um de nós sabe do seu equilíbrio. Ou faz,
como me pego, me engano, faço que não sei? E as coisas subjetivas antecedem às
objetivas? Objetos, por exemplo, nascem de desejos?
77
A emoção equilibra com a razão?
78
Uma ponte entre a ideia e a realização é o
planejamento. E, pra mim, ele anda bastante quando consigo responder a 7
perguntas básicas: o que, porque, quem, quando, como, onde, quanto ...
Antes de mergulhar nos fazimentos, pra
facilitar, gosto de montar um quadrinho com 5 colunas. Na primeira coluna, as
tarefas. Na segunda, quem se responsabiliza por cada uma. Na terceira, até que
data. Na quarta, o custo de cada tarefa. Na quinta, observações.
Ordeno então as tarefas pela ordem das datas.
E no dia-a-dia vou à luta. Lembro que quanto mais detalhadas as tarefas, mais
possibilidades de acertos.
79
Adoro xerocar, distribuir textos
que me tocam. Tem um, não sei o autor:
As crianças aprendem aquilo que vivem
Se uma criança vive criticada, aprende a
condenar
Se uma criança vive com hostilidade,
aprende a brigar
Se uma criança vive envergonhada, aprende a
sentir-se culpada
Se uma criança vive com tolerância, aprende a
ser tolerante
Se uma criança vive com estímulo, aprende a
confiar
Se uma criança vive apreciada, aprende a
apreciar
Se uma criança vive com equidade, aprende a
ser justa
Se uma criança vive com segurança, aprende a
ter fé
Se uma criança vive com aceitação, aprende a
respeitar-se
Se uma criança vive com aceitação e amizade,
aprende a encontrar o amor no mundo
80
Criança,
a Alma do Negócio é um documentário sobre publicidade, consumo e infância. Quem
assiste, amplia o olhar. Está em http://www.youtube.com/playlist?list=PLE2ABADAEF30E4007
81
Já o livreto Por Que a Publicidade Faz Mal para Crianças está em http://www.alana.org.br/banco_arquivos/Arquivos/downloads/ebooks/por-que-a-publicidade-faz-mal-para-as-criancas.pdf
Outras informações e muitos
caminhos se abrem a partir do Instituto Alana, que cuida d’A união da educação, da cultura e da assistência social para o
desenvolvimento da cidadania e da qualidade de vida de todos nós. http://www.alana.org.br
82
Tiro por mim. Demoro anos para
modificar algo que me facilite ampliar minha zona de conforto. Alterações de
comportamento, os mais velhos sabem, demoram uma geração ou mais. Mas vale a
pena plantar o que me faz bem e a outros, acompanhar o crescimento, usufruir
dos frutos.
83
O Jornal do Commercio, de 17 de
dezembro de 1836, anuncia:
Comprão-se
escravos com officios e sem elles, escravas com prendas e sem ellas, tanto para
a Cidade como para fora; na rua detraz do Hospicio n. 81.
Vende-se
huma preta com huma cria de 3 mezes, muito carinhosa para crianças, e com
leite; e hum preto da roça, sabendo fazer farinha e derrubar mato, e o mais
serviço, de 23 annos, muito robusto; no Campo da Honra, lado da Rua do Conde n.
63.
Vende-se
um preto padeiro, na rua do Sabão n. 118.
Precisa-se
alugar hum bom cozinheiro, no hotel de Johnston; na rua do Ouvidor n. 215.
Aluga-se
na rua do Lavradio n. 90, huma preta boa ama de leite.
Vende-se
huma preta de nação, que engomma, cozinha e lava, tudo com perfeição, e cose
alguma cousa; na rua de S. Pedro n. 183.
Vende-se
um moleque de 16 a 18 annos de idade; na praia dos Mineiros n. 79.
84
É comum eu sair de encontros com
mais dúvidas do que no início.
85
Mamãe dizia: quando um não quer, dois não brigam. Contribuiu pr’eu ser assim, pacifista
como penso que sou. Antes, apanhei muito, nesta de não entrar na briga. De não
querer, querendo?
86
As gargalhadas de papai soam
dentro de mim até hoje. E sua solicitude, senso ético, bom humor. Era pródigo,
deu muito do que tinha. Não sabia, do que sei, fazer um café, fritar um ovo.
Mas comia bem, era um bom garfo. Numa
época, cada garfada uma pimenta malagueta. Gostava de fazendas, bois, de vacas.
E de mulas, éguas, cavalos. Muito mais de mulher. Imagino que um bom amante,
tão delicado com elas, eu imagino. Lembro de papai, me alegro. Sou um tanto
ele.
Sou um tanto também mamãe, que
pegou as rédeas da casa quando eu era inda pequenininho. Mamãe gostava de
conversar. Articulava bem. Não me lembro de mamãe com abraços. Lembro dos chás,
das gemadas que me curavam nas minhas febres. E das decisões decididas. Se
enternecia com uma serenata, com uma mesa farta, marido e filhos servindo-se,
supridos de falas e comidas.
Meu irmão morreu cedo, aos 41,
42. Era o mais velho de nós cinco. Inteligente pra caramba, primeiro lugar até
o fim do científico. Depois, oito anos pra fazer um curso de engenharia que
pedia quatro. Divertiu pra valer em Ouro Preto. Jogava sinuca, ganhava com
frequência. Quando já empregado na CBA, subiu rápido pra chefia de
departamento. Enviava uma boa parte – acho que um quarto – do seu salário pra
mim, quando eu estudava em Brasília e ainda não trabalhava. Lembro dele me
levar junto pra peladas da infância: primeiro pras peladas de futebol, depois
pras peladas da zona. Era puro amor fraternal e eu não sabia. Dá saudades.
Stella me antecedeu na chegada ao
mundo. Lina veio antes de Stella, depois de João Porphírio. E Heloisa Helena se
juntou a nós depois de mim. João foi pra fora, pra universidade, quando eu
tinha 11 anos. Só nos vimos esporadicamente por uns tempos. Convivi com Lina,
Stella, Ló diariamente até meus 16 anos, quando fui fazer o segundo ano do
científico em Belo Horizonte. Voltei, fiz o terceiro em Montes Claros. E aos 18
anos fui pra Brasília, fazer Economia, que até hoje não sei direito o que é.
Novinho, eu queria ir junto com os mais velhos pros bailes que não podia. Mas tive um bom período de festas, descoberta
de outros mundos, logo adolesci. Tinha hora pra voltar, no início. Depois os
tempos se alargaram.
A visão de mundo de mamãe
facilitou nossa vida familiar. Avançada pro seu tempo, moças e moços tinham os
mesmos direitos em casa. E cada um tinha seus deveres. Aos sábados eu engraxava
os sapatos, Eventualmente ajudava a encerar a casa. Mas não só.
Tive um berço bom, sinto-me
amado.
Stella, Lina, Ló, permanecemos
amigos durante nossa vida. Temos sido solidários. É prazeroso nos encontrarmos.
Conversamos de um tudo, recordamos, nos atualizamos, jogamos buraco, comemos,
passeamos. Aprendemos desde cedo o respeito pelo jeito de ser de cada um. Me
sinto em casa em suas casas, tenho gosto. São portos afetivos.
De Vera com João, veio Roberta. De Magda com João, nasceram Ludmila e Rodrigo Luiz. De Lina
e Paulo vieram Paulinho, Cláudia e Juliana. De Stella e Alceu, Marina e Lucas.
De Ló e Carlos Alberto, Pedro Gustavo, Ana Julieta, Maria Elisa e João Luiz. De
Ana comigo, Felipe. Com Vânia, tivemos Pedro. Regina e eu nos cultivamos.
Antes, com Ricardo, Regina teve Gabriela, André, Rafael.
Cláudia e Iesus tiveram Iesinho e
Larissa. Heitor e Heloisa nasceram de Clarice e Paulinho. Roberta e Laércio
tiveram Clara, Heloisa e João. Leonice e Rodrigo Luiz tiveram Guilherme e Bárbara. Juliana e Marcelo tiveram Luiza. Felipe casou com Vanessa,
Marina casou com Carlinhos, Gabriela casou com Bruno, André noiva Amanda,
Rafael namora Cássia. Iesinho está com Zhairah. Pedro namora Irene, Lucas
namora Isabela, João Luiz namora Elena, Lili namora Pedro Henrique. Cada um do
seu jeito. Uns ou outras talvez tenham amores que não conheço.
87
Jogador de futebol: cada bola que
chega, um novo problema para ser resolvido rapidamente.
88
Instituições
são compostas por pessoas as mais diversas. Umas com umas características,
outras com outras. Ando refletindo sobre comportamento, o meu, o de outros.
Tenho
vazios que levo desde muuuuuito tempo atrás... e tenho descoberto que muitas
das minhas carências atuais têm que ver com estes vazios antigos.
Imagino
que pessoas que roubam ou mesmo que acumulam coisas e sentimentos talvez
tenham, por exemplo, sido desmamados cedo. Ficou aquele vazio "que não sei o que é, só sinto...". E
aquele sentimento que "o mundo me
deve... e tomo do mundo o que o mundo me deve...". Enfim, pessoas que
sentem que o mundo lhes deve.
Chutando,
se psicopatia define aqueles que não têm remorso, não sentem culpa... e com
isto, naturalmente sofrem sem saber "com
este vazio que não sei de onde vem...", tendo a sentir medo e,
contraditório?, compaixão.
Enquanto
isto, como diz o cantador popular, a cada
passo que dou o mundo muda de lugar.
89
Aqui
em casa, quase sempre há água no fogo, prum café ou prum feijão.
90
O presente passa. Em relação ao outro, de um
lado muitas e boas satisfações. Leveza no trato, profundidade nos assuntos,
comida e diversão saudáveis. De outro, cada vez mais frequentes e intensas,
crenças e interesses diferentes. Temos, boa parte do tempo, conversas repetidas,
círculos viciosos. Sofremos. Copos cheios, gotas de irritações, transbordes. Vaivém
agudo. Relembro, quando o passado era presente, o que senti, refleti, me
escrevi. Histórias se repetem, diferentes, semelhantes. A imagem, espirais como
retratos de repetições, mas novidades. Nas novidades, outros ciclos despontam,
agora virtuosos. Como na história bíblica, vacas magras intercalam gordas
vacas.
91
Tenho outros lados. Sou um tanto
Tarzan, Mandrake, Super-homem. E São Francisco, Reich, Rajeneesh, Freud, Laing,
Jung. Sou meu irmão, minhas irmãs. Meus filhos e eu somos um tanto um e outro.
Sou papai, sou mamãe. Algo fica em mim de quem me emociono.
92
Tão bom ler sem ter que fazer
provas. Relaxo e gosto.
93
Pedro
fala: muita gente reclama de falta de
tempo. Pra mim é falta de organização. Eu complemento: também falta de se dar limites.
94
Compartilhar
sentimentos, conhecimentos e objetos têm me trazido sentimentos, conhecimentos
e reconhecimentos.
95
Botar
em prática minhas sacações - insights?
- tem sido trabalhoso, pero gratificante. A vida com menos tem sido mais livre,
melhor.
96
Tive sacações com
sacações de outros. Sem a certeza das autorias, relembro.
O
tempo não para. Cazuza
A
mente se move e se move e a energia vai onde o pensamento vai. Dito chinês
Por
princípios, eu luto. Dionino
Colaneri
Relações
de confiança são base para formação do Capital Social. Gilberto Fugimoto
Conhecimento
se origina da experimentação. Lou Marinoff
Uma
verdade científica não triunfa porque se consiga convencer a seus opositores e
fazer que vejam as coisas com clareza, mas sim porque os opositores acabam por
morrer e surge uma nova geração que se familiariza com a nova verdade. Max Planck
Conhecimento
é poder. Francis
Bacon
Sobre si mesmo, seu corpo, sua
mente, o indivíduo é soberano. John Stuart Mill
Não
vemos as coisas como elas são. Nós as vemos como nós somos. Anais Nin
Os
planos funcionam. O problema é o cronograma. Sérgio Mello
Só
quero saber do que pode dar certo. Caetano Veloso
Como
posso dizer sim a algo que não está em mim? Regina Rodrigues
Chaves
Complexidade: ao invés de isto ou aquilo, isto
e aquilo. Mário Magalhães Chaves
97
Tomo tento do meu tamanho quando lembro do
que entendi do que Alvin Toffler escreveu – e eu soube através de Carl Rogers,
no seu livro Grupos de Encontro. Para
o homem, uma das questões básicas de agora e do futuro é a rapidez com que o
organismo humano pode adaptar-se à velocidade de mudanças provocadas pela
tecnologia. Toffler refere-se a isto como um choque futuro e sugere que pessoas terão colapsos ao tentar
adaptar-se às inacreditáveis mudanças operadas.
Ele fala que, se o homem existe há cinquenta
mil anos, este tempo corresponde a aproximadamente oitocentas gerações de
sessenta e tantos anos. Seiscentas e cinquenta destas gerações foram vividas
nas cavernas. Há apenas setenta gerações surgiu a escrita e foi possível a
comunicação de uma geração para outra. E só há seis – ou sete? – gerações
chegou a palavra impressa. O motor elétrico há duas – ou três? – gerações. E a
maior parte do que hoje usamos no dia-a-dia foi construída no presente.
Eu sinto em todos meus sentidos o
desenvolvimento tecnológico contemporâneo. Já o desenvolvimento emocional, aqui
e ali, num ritmo menor. Como se afetos se retraíssem para dar lugar ao
corre-corre tecnológico. Será isto um colapso?
Pois sei em mim que a
internalização de senso ético está ligada diretamente às práticas das
afetividades.
98
Se a luz que vejo de uma estrela
foi emitida há algum tempo significa que vejo o que foi emitido no passado...
vejo no presente o passado.
Da mesma forma, o gesto que faço
agora poderá ser visto pelos que estejam naquela mesma estrela, daqui a algum
tempo?
Esta luz da estrela caminha de lá
pra cá? Esta imagem do meu gesto caminha daqui pra lá? Estas memórias que andam
– a luz, o gesto – são os tais registros akháshicos?
99
Quando me
desequilibro me sinto adoentado, penso em auto-hemoterapia. Se mais intenso,
peço atenção do Jun Kawaguchi, amigo e acupuntor. Paralelo, bebo mais água,
como mais leve. E descanso e respiro, descanso e respiro...
Prefiro ir a
médicos quando estou saudável. Fico mais de igual pra igual, troco ideias,
informações, eventualmente afetos, criamos vínculos. Promovo minha saúde quando
me cuido, caminho um tanto, como o que me faz bem, convivo com quem me sinto à
vontade, faço o que desejo, cuido do outro como de mim. E escolho o que sinto,
penso, falo, faço.
100
Nos jornais, entrelinhas são atos
falhos?
101
Eu desejo porque sinto falta? A
falta que sinto é como um buraco de onde foi retirado algo que eu tinha? Se sou
suprido, permanece o desejo?
102
Volta e meia me faço perguntas. Por
isso tanta interrogação? Ou
interrogações já existiam, antes mesmo das perguntas?
103
Construo meu futuro presente em
cada ato de agora? Não vislumbro meu futuro se não sei do meu presente?
104
Esta contabilidade cósmica, que
sinto, existe? Não preciso, então, anotar débitos e créditos?
Posso parar de controlar?
105
Antecipo para hoje o que desejo
no futuro? Experimento um tanto do futuro agora?
106
A propaganda é feita de
metáforas? Parábolas também são feitas com metáforas?
107
Mudanças radicais passam não pela
razão, mas pelos sentimentos? Pela fé, por exemplo?
108
O sentimento define o
comportamento? A cultura define a moral? Comportamento, combinação de
sentimento e razão?
109
Já assisti palestras sobre
sexualidade que só mostravam doenças. Já li textos que condenam o sexo. Fiquei
com medo. O que me salva é o que aprendo com quem vive bem sua própria
sexualidade.
110
A pílula foi um marco. Antes, o
medo de engravidar alimentava o medo de transar. Depois, a alegria de transar
alimentou a alegria de viver.
111
O movimento hippie ampliou meu mundo. Tudo tão novo e tão simples. A comida, a
música, a atitude, o amor.
112
O viagra inda é um mistério.
Funciona, mas não sei se causa efeitos colaterais.
113
De tempos em tempos, uma praga
delimita, dá limites. Recentes, tuberculose, sífilis, gonorreia, hiv, hpv.
Tantos amores contidos, interrompidos...
114
Ser fiel a mim e ser fiel ao
outro? Como posso combinar o futuro se o futuro é mistério?
115
A fé vem da vivência? Tenho fé
quando experimento? Tudo num átimo, o tempo todo fora e dentro se misturam?
116
Aprendo, delimito a realização de
meus desejos ao considerar o sentimento do outro.
117
Alimenta minha alegria passear no
Boitatá. Também fico contente no
ambiente do Céu da Terra. E na Orquestra Voadora, no Maracutaia, na praça São Salvador. Em cada bloco de carnaval,
um movimento, uma sabedoria própria.
118
Que é mesmo livre arbítrio?
119
O amor será assim, uma amostra do
paraíso? Gente como eu, em estado de alegria? O tempo vira agora, o espaço é
aqui, serenidade e eu somos um só?
120
Na vida, a síntese do desejo é
estarmos contentes?
121
Lembra aquela história do
pescador? Vilazinha do interior, beira de rio, o pescador adormece, o peixe
morde, a vara treme. O turista vê: vou
mexer com este caipira. Pega a vara, pesca, pesca, pesca.
Acorda o pescador, aponta o cesto
cheio: olha o que você perdeu! Inda
zonzo do cochilo, o pescador: o que? O
turista: os peixes, olha o tanto. O
pescador: pra que? O outro: pra vender, ganhar dinheiro. Fazer o que
você gosta. O pescador: mas já tô
fazeno...
Eu me sinto assim, nesta fase que
curto enquando é. Eu, satisfeito comigo, desejos ausentes, tento atento viver
contente. Difícil é suportar a alegria. Tristeza era fácil, matava no peito
todo dia.
122
Entre graves e agudos, este jeito
de escrever. Crônicas breves?
123
O que sou hoje é o que construi antes
em cada ato passado. Mas vivo mesmo só o presente.
124
Vestidos. Saias em casa? Serão
frescas, arejarão meu corpo? Práticas, as saias? E o olhar do outro? E eu me
olhar com saias? Só mudo e escondido?
Se em relação a saias sou assim,
como serei em relação a cada possibilidade de prazer?
125
Os pecados mortais, os pecados
veniais. O prazer perde espaço. Um aprendizado, estar contente agora, aqui. Já
o futuro, noutro lugar: ali, é mistério, é novo. Só saberei ao experimentar.
126
Relembrando Laing, o Ronald,
quero agora investigar como aqui cheguei, o que faço neste mundo, porque eu,
nós aqui nos encontramos, quem somos. Mas antes, treinar alegria.
127
Muita coisa já esqueci, um tanto
de livros que li. Algo do DNA de lá passou pro DNA de cá. Sou assim um saldo do
que me entra, do que me sai. Da soma do que permanece, ora as células, ora os
conhecimentos, os sentimentos, as memórias.
128
Estou
grávida de me tornar mais inteira. O pensamento é a linguagem, o
meio é a mensagem. Estas ideias vieram de outros que não eu. Imagino
flutuantes. De repente atraídas, se tornaram insights. Agora são também minhas. Compartilhadas, permanecem sem
donos, mesmo sendo suas, minhas, deles, nossas.
129
Falsa memória, lembro de
encontros comigo em que eu não estava lá. Presentes só na memória. De fato,
talvez só desejos.
Lembro de fatos imaginados.
Brinco com esta memória que me supre, me torna quem não sou. Conto só pra mim.
130
Separações na minha vida: as que
me lembro, carrego comigo. São aparentes separações?
131
O que escrevo, se já sei, é mais
uma recordação.
132
Sinal de saúde, não sei onde fica
meu fígado.
133
Sou imaturo no que sou ignorante.
Quanto mais ignoro o que sinto, mais verde sou.
134
Hoje distribuímos quentinhas que
Regina, Bruno e Vera produziram. Os olhares, as palavras de quem, com fome,
recebia, enterneceram nossos corações. Dar traz prazer.
135
Sexo: as dúvidas de meu avô
permanecem geração após geração. Na infância, sexo um mistério. Na adolescência,
sexo um segredo. Na fase adulta, que faço com meu tesão por gente que não
devia? Maduro, acalma-se um tanto. Morto, ausência de libido, ausência de
conflitos.
136
Fui outro dia a um hospício. No
palco, na plateia, não tinha ideia: quem era público, cuidador ou louco.
Loucura total, ali, era o mesmo que sanidade total. Percebi que em mim tenho um
tanto de cada, sou normal.
137
Robert A. Monroe, em Viagens Fora do Corpo, ensina passos pra
viajar. No meio do caminho, me deu um medão danado. Não fui.
138
Quando solto um pum alto, ai que
vergonha. É que, sem querer, relaxei. Estou à vontade.
139
Relaxo? Se
divago, sonho. Se sonho... Mas o sonhar não antecede toda realização?
140
Que faço pra atrapalhar minha própria vida?
141
Repito o mesmo drama do ano passado. Fui ao
Boitatá, bloco bom, praça XV. Cheguei, procurei minha carteira, cadê? Fui à
delegacia de polícia, bem atendido, fiz o registro de ocorrência. Furto?
Outras pessoas, mesma hora, mesma delegacia, situações semelhantes: furto. Agora me preparo pra contactar CEF, CPF, carteiras de identidade e motorista, cartão do Sesc, cartão da AMIL, cartão Metrô, cartão Riocard.
Toda vez que tropeço numa pedra, reclamava. Hoje reclamo da pedra, mas antes de mim: não prestei atenção. Sei agora, sabia antes, não devo levar meus principais documentos prum lugar com riscos de furto.
Penitência: procedimentos necessários para comunicar a cada órgão público correspondente aos documentos perdidos, furtados. Domingo de carnaval, vou... O telefone toca.
Outras pessoas, mesma hora, mesma delegacia, situações semelhantes: furto. Agora me preparo pra contactar CEF, CPF, carteiras de identidade e motorista, cartão do Sesc, cartão da AMIL, cartão Metrô, cartão Riocard.
Toda vez que tropeço numa pedra, reclamava. Hoje reclamo da pedra, mas antes de mim: não prestei atenção. Sei agora, sabia antes, não devo levar meus principais documentos prum lugar com riscos de furto.
Penitência: procedimentos necessários para comunicar a cada órgão público correspondente aos documentos perdidos, furtados. Domingo de carnaval, vou... O telefone toca.
142
Eta mundo bom. O círculo virtuoso toma
assento. Sem a carteira que ontem perdi – furtaram? – no mesmo dia tomei
providências relativas a alguns documentos e hoje me preparei para cuidar dos
outros. Trim, trim trimmmmm:.. Da mesma vez que no ano passado... Alô! Encontrei sua carteira!
Lembrei do que entendi do filme Dúvida. Uma freira faz comentários sobre
a vida sexual de um padre. O boato se espalha. Cai a ficha, a freira procura o
padre, pede perdão. O padre: perdôo. Mas
antes, sabe um travesseiro com penas? Chegue na janela, solte as penas ao
vento, depois recolha pena por pena...
Pronto, estou recolhendo as penas. Reforcei
minha visão de mundo. O mundo tá ruim e tá bom, vicioso e virtuoso, depende um
tanto do meu olhar... E dos olhares de outros com quem me identifico...
143
Labirinto. Tristezas se
aproximam. Tudo um tanto embaralhado. O primeiro pensamento é fuga. Perdido
nestas emoções, procuro, procuro, não encontro responsáveis fora de mim. Sem
limites entre eu e o mundo. Telefono a cada outro, escuto impaciente, não ouço
o que desejo. Se não sei pr’onde ir, não vou? Respiro, me acalmo.
144
Gera trabalho para outros - terá dificuldade
em sua autonomia futura? - a criança que não aprendeu ajudar na manutenção da
casa: lavar pratos, roupas, arrumar cama e mesa, varrer, ir à feira, ao
supermercado, à padaria, ao banco, fazer um café, encher o filtro, limpar a
geladeira, cozinhar...
145
Roberto, o Pontes, conversa livre, saca: amor e medo, afetos básicos. Bate no meu
peito, direto à compreensão. Mais próximo do início, o fio de meada: amor e
medo. Antes, inda mistério.
146
Perguntas que me
faço: imagine...
Qualquer um, eu, você como eu, diante de si mesmo, a se fazer perguntas.
Sou diferente do que
deveria ser?
Devo limitar-me à
ética?
Aprendo fazendo?
Ensino sendo?
O sofrimento que gero
em mim é fronteira, é limite?
Em mim, onde está
minha alegria?
Se contente, o que me
facilita estar, permanecer?
Em que me impeço?
Que faço pra
atrapalhar minha própria vida?
O que está ao meu
alcance?
O que, em mim,
alimento?
Que sei que não sei?
Que sinto que sei?
Afeto, berço de ética?
Humanidade, prioridade?
O pensamento vem do sentimento?
Onde nasce o que sinto?
Moral é o que aprendi?
Ética é o que sinto certo?
Moral varia em cada cultura?
Ética é uma sabedoria que não sei de onde veio nem quando?
Ética é deus em mim?
Quanto mais pergunto, menos sei?
Quanto mais aprofundo, mais mistérios, mais perguntas?
Ausência de memória
diminui os desejos?
Menos desejos, menos
angústias?
O
que é público, o que é privado?
O
que me permito, o que a outros inibo?
O
que está em meu poder de realização,
o
que depende de outros?
O
que cabe a mim, o que cabe ao outro?
Sentir, sacar, refletir?
A
realidade determina a ordem dos passos?
Ética
é pressuposto?
Sou
do jeito que gosto?
E se o suficiente
impera,
que faço com meus
tempos, minha vida?
Afinal, quem está
paciente?
O médico, o doente?
Escolho o que penso,
falo, faço?
E
o que sinto, que desejo?
Cuido de mim?
Que está ao meu
alcance?
Em mim, onde está
minha alegria?
Onde vai meu
pensamento, vão meu sono, meus sonhos?
Pensamento não se
mede,
vai além das
distâncias, ignora o tempo?
Sentimentos
interferem em pensamentos?
O que me alegra?
O que, semelhante ao
meu desejo, o outro deseja?
Que relações cultivo?
O que me impede ser
quem desejo?
Meus medos de que?
Louco vive o que
sente?
Saudável é palpável?
Sou melhor que o
outro? Pior?
Comparo porque me
falta?
O
que me permito, o que a outros inibo?
O
que posso? O que não?
O
que cabe a mim, o que cabe ao outro?
A realidade determina a ordem dos passos?
147
O futuro é meu desconhecido.
Sou o que hoje sou, a cada futuro que adentro encontro o novo. Sou neste
momento experimentador. Tento, tropeço, aprendo.
148
Quando me repito, recordo, me educo. Tudo
tentativa. Como naquele jogo, batalha naval. Volta e meia tiro n’água. A diferença é quando acerto. Ganho e ninguém
perde.
No meu manual tem: inspirar, expirar,
respirar. Atentar ao que sinto, ao que penso, falo, faço. Aprender a
compreender, aceitar a mim, ao outro. Exercitar o afetuoso, comigo e ao redor.
Separar minhas loucuras das loucuras do outro. O humor como indicador: se de
bom humor, estou bem. Se não, que faço?
149
Já no ventre, talvez antes dele, o
básico individual e coletivo satisfeito: que mais cada um de nós
necessitará?
150
Tento, aprendo o virtuoso, singelo, belo,
contente? Escolho o que penso, escolho a palavra, seleciono o que faço? Que
desejo?
151
Sinto que cuidar de mim faz bem a mim e a
quem ao redor.
152
Governar. Cada vê mais admiro Dilma. Se é tão difícil
administrar minha casa, imagino um país, onde os moradores têm livre arbítrio e
caracteres variados. E uns têm ética dentro de si e outros não.
153
Ditadura. Aprendi lá em casa: reconhecer que errei me
faz melhor. Desconfio de mim quando não reconheço meu próprio erro. Se
reconheço, cresço. Se não reconheço, erro de novo. Confiarei mais, mesmo em
quem errou, se reconhece seus erros. É errado colaborar com ditadores. A
ditadura foi um erro. Qualquer ditadura: em mim, em casa, no trabalho, no país.
154
Para estar assim,
do jeito que me gosto, demorou tanto. Antes só soube ser do jeito que outros
queriam.
155
O que me incomoda no outro é o que sinto em
mim. Pretensioso, julgo o outro pelo que sinto. Não falo dele, falo de mim.
Tenho um padrão, minha voz me trai. Desejo
ser o modelo, desejo ser aceito, reconhecido. Tudo um tanto por causa deste
vazio que não conheço. E quando conheço, não entendo.
156
Ralph Viana
definiu: sério alegre. E foi e mais
as Alternativas no Espaço Psi – Psicologia Psiquiatria Psicanálise. Parque
Lage, fronteira dos anos 70 e 80, mais de mil eus se encontram num pedaço do
futuro à procura de si e de nós. Cada eu faz seu passeio, seu mergulho, escolhe
uma e outra e mais outra das mais de cem vivências, palestras, debates,
performances... Arte, ciência, espiritualidade, dúvidas misturadas como são.
Lapso, a memória afetiva se abstrai do tempo. Ali está aqui. Somos espaço, eu e
lá. Me incluo no mundo, sou o mundo,
represento o todo. Um homem comum, como cada um.
157
Penso na pior
hipótese antes de iniciar uma compra, uma venda, um trato, um contrato. Penso
em soluções caso aconteça a pior hipótese. Se permaneço tranquilo, sabedor que
há saídas saudáveis, dou cada passo. Aprendi que dá muito trabalho corrigir
ignorâncias.
158
O que uma arquiteta arquiteta? Tetos?
159
Domino mundos e
perco guerras no interior de mim mesmo.
160
Tudo me leva a crer
que o mundo será o mesmo sem mim.
161
Olho no espelho e não reconheço o
velhinho. Sou eu.
162
A morte é também uma escolha?
163
O conteúdo da programação é a essência. O
conteúdo da comunicação é a essência. O conteúdo do afeto é a essência. O jeito
de afetar, essencial.
164
O homem ideal acrescenta conteúdos
consistentes em qualidade ao que vive. É cuidado. E cuida de quem cuida.
165
Pessoas que trabalham a favor são fontes de
movimentos libertários. Algumas dão
chão: cuidam da administração, criam condições para o trabalho de
outras. Outras pesquisam, imaginam, propõem e produzem produtos geradores de transformações. Umas levam as informações onde o povo está.
É mais simples como
aqui parece. A base são as pessoas. Motivadas, a insegurança – o tititi – desaparece, a paz reina. Informadas, todas
sabem do que acontece. Pessoas como eu se transformam em realizadores. E outros, se
interessados, tendem a se qualificar como multifuncionais. Como potencialmente somos todos.
166
Cuidados com quem
cuida: pessoas são a base de funcionamento de instituições.
Parece fundamental o estímulo à auto-estima de cada um dos que trabalham com o
público, de forma que cada vez mais todos tenhamos prazer no que fazemos.
Isto significa facilitar o crescimento
humano, a melhoria de qualidade de vida de cada funcionário acolhido no seio da
instituição, inclusive através do acesso a informações consistentes.
167
Estímulo
à pró-atividade: o gostar de si mesmo – fundamental para gostar
espontaneamente de outros – implica em ter consciência de que realiza trabalhos
de qualidade, é útil e necessário.
A
experiência nos diz: quem gosta do que faz dificilmente necessita ser
controlado. No máximo, acolhido, respeitado, orientado. Este respeito se traduz
em decisões e atos que considerem humanamente cada pessoa pelo que é e realiza.
168
Cuidados
com as expectativas. Oferece quem tem.
Como diria Rodrigo Fonseca, o sociólogo: vaca
não dá coca-cola. Não devo esperar coca-cola de uma vaca, que já me mostrou
que dá é leite.
169
Mesmo
que os ditos superiores de cada um tenham – em princípio – uma visão do conjunto,
cada realizador de tarefas pode contribuir para decisões acertadas, uma vez que
– também pressuposto – é cada funcionário quem deve melhor saber do seu ofício.
170
Talvez
seja verdade que se a fé vem da
experiência - como preconiza corrente de teologia contemporânea - a vivência-experiência, se consciente, aprofunda
o saber.
171
Humor estável é sinal
de inteligência emocional?
172
Os mesmos fatos,
visões diferentes. É assim em relação à própria criação do universo, da terra,
do homem. Ser ou não ser, passam os séculos, ao fundo permanecem esta e outras
questões.
Cada homem, do seu
jeito, cultiva – ou não – sua própria evolução, em tentativas de viver melhor. A
soma destas revoluções individuais se traduz na evolução da humanidade como um
todo.
A memória nos lembra
da nossa história recente: vida rural, industrial, pós-industrial. Agora
globalização, fase de stresses,
tendências desumanizadoras. Indivíduos, bairros, cidades, países fortes e
fracos - é olhar ao redor - destinam recursos para as armas.
Volta e meia,
implosões de insatisfações que – juntas – se traduzem em conflitos coletivos,
guerras. A vida, breve: tempo curto para lutar contra.
O buraco – quase
sempre – mais embaixo. O inconsciente individual e coletivo – parece – induz
nossas ações.
Por outro lado,
olhando bem, sinais de vida no planeta Terra. A favor do homem.
Também aqui, cada ato
se traduz no resultado. Cabe a cada um de nós, no que pode neste barco, refletir,
nortear seus atos. Parece poesia, pode ser também ato, fato.
173
Quando ouço uma boa gargalhada,
lembro papai. Ou quando alguém é prestativo.
174
Winnicott: a essência da
democracia repousa no homem comum, na mulher comum, no lar comum.
175
Freud: No
exercício de uma arte vê-se mais uma vez uma atividade destinada a apaziguar
desejos não gratificados – em primeiro lugar, do próprio artista e,
subsequentemente, de sua assistência ou espectadores.
176
Ser livre
não significa fazer tudo que desejo, mas seguir as regras que eu escolho. Alguém me
acertou. Foi Kant?
177
Bilhete prum amigo: inda não aprendi falar
com calma, entre tantas coisas que inda não aprendi. Já entre o que aprendi,
aprendi um tanto escutar meu corpo. Meu corpo me dá prazeres, me sugere
limites.
Outro dia fique três horas na cadeira do
dentista. Anestesiado, meio dopado com um calmante brabo. Fiquei cinco dias
quieto, sopa, água, suco, sono, leitura. Recuperei o equilíbrio, voltei ao
trabalho, produzi mais tranquilo.
Sem querer querendo, costumo dar conselhos.
Contraditório, tenho dificuldades em ouvir conselhos.
Do amigo, procuro respeitar suas decisões. E
desejo contribuir pra suas alegrias. Me alegro com sua alegria. Por
respeitar-lhe, agora me calo. Mas saiba que desejo fazer o que está ao meu
alcance, em favor do nosso bem. Por
favor me fale o que deseja falar. Aprendo também que a vida terna me faz a vida
melhor.
178
Respondo
rápido a perguntas que me faz, por email, uma estudante de psicologia:
a. Porque escolheu este campo da psicologia para atuar?
Sou um curioso. Leio sem ter que fazer
provas: não sou profissional do ramo. Adoro insights. Queira
ou não, todo homem navega em áreas psis quando interfere em emoções, nas suas
próprias e nas do outro.
b. Quais as dificuldades encontradas?
Em mim, minhas próprias resistências, meu
conforto arraigado. Em um ou outro, ausência de consciência, base – como afetos
– da ética.
c. Como é realizado seu trabalho neste local?
Rodas de conversas, com base na metodologia
das Terapias comunitárias - que não são psicoterapias. Isto do lado, digamos,
subjetivo. Do lado objetivo, através da metodologia das Redes comunitárias.
d. Quais as diferenças da atuação em sua área da
teoria para a prática?
Quando penso, elaboro, escrevo, considero meu
mundo, minhas regras, minha cultura, minhas referências. Quando em comunidades
menos favorecidas, o mundo é outro, são outras as regras, culturas,
referências.
e. No
seu ponto de vista a psicoterapia corporal pode ser um tipo de psicanálise?
São, digamos, métodos que se complementam.
Aprendi com Wilhelm Reich - e em mim, pela prática da terapia reichiana - que,
como todos?, carrego minha história de vida no meu corpo. Quando mexo no meu corpo,
mexo em minha memória afetiva e desperto lembranças e emoções a elas
associadas. Atos, digamos, psicanalíticos me facilitam a compreensão emocional
do que vivo.
f. O
que você acha da Psicoterapia Corporal em grupo?
Quando percebo no outro vivências, questões
semelhantes às minhas, aprendo que minhas questões não são só minhas, não estou
só nestes mistérios. Gente encontrando com gente é pura humanidade.
179
Quando Glauber falou “Nonatinho, treme a câmera, treme a câmera...”,
compreendi que também eu poderia gravar. O jeito era linguagem, o que seria
errado poderia ser o certo. Zequinha Borges, anos depois, foi direto quando eu,
inseguro, lhe pedi mais uma vez para registrar em vídeo o que eu desejava: “Porra, Luiz. Vai à luta, filma você,
arrisca.”. Arrisquei, errei, tropecei, acertei. E assim vou, neste
equilíbrio em risco.
180
A palavra enfezado
vem de onde? Cheio de fezes, enfezado?
181
Ações, imagino,
funcionam assim. Acionistas, fazemos uma vaquinha pra investir num negócio.
Somos, juntos, donos do negócio. Qualquer lucro que o negócio der, vem pros
donos das ações. Mesmo que o negócio seja lá nos confins do mundo e vivamos
aqui, no coração do que nomeio civilização. Muitas vezes o fim do mundo é aqui.
E os acionistas estão lá, nos primeiros mundos. Parte do nosso trabalho compõe
o lucro de acionistas que não conhecemos. É justo?
182
Só agora, aos 65, reconheço
qualidades de mamãe, de papai. Compreendo, amadureço. Surpreso, quando minhas
qualidades são tão cedo reconhecidas.
183
Na beira
dos 66 anos, me sinto bem. Os exames comprovam.
Teste
ergométrico > cinecoronariografia, não. Precordialgia, nenhuma. Aptidão
respiratória, boa. Tomografia da coluna > escoliose, sinais de artrose
lombar. Tomografia dos seios da face: espessamento mucoso no seio maxilar
direito, desvio do septo nasal.
Exame de
sangue > normais as hemácias, hemoglobina, hematócrito, anisocitose,
leucócitos, basófilos, eosinófilos, neutrófilos, bastões, segmentados,
linfócitos. Monócitos, 11%, quando o normal seria entre 2 e 10%. Plaquetas,
155, quando o normal seria entre150 e 450. Colesterol, 172. Triglicerídeos, 78.
Colesterol HDL, 51. Colesterol LDL, 105. Colesterol VLDL, 16. Colesterol NÃO
HDL, 121. Índice de Castelli I, 3,4. Índice de Castelli II, 2,1. Antígeno
superficial de Hepatite B, não reativo. Anticorpos contra o antígeno
superficial de Hepatite B, não reativo. Pesquisa de anticorpos para Hepatite C,
não reativo. Anticorpos IgG anti-herpes simplex, reativo. Anticorpos IgM
anti-herpes simplex, não reativo. Antígeno prostático específico, 3,12. Relação
PSA livre/PSA total, 0,22.
Sinto que devo diminuir ovos e
queijo. E assistir a mais comédias, namorar mais, caminhar diariamente.
184
Aprendi: quando facilito o trabalho do
lixeiro, porteiro, carteiro, cozinheiro, feirante... – e de nós todos, que
entre nós nos cuidamos – facilito também a minha vida. Quando cuido do outro, o
outro – do jeito que sente, que sabe, que pode – cuida de mim.
185
Só o essencial é essencial? Quem, o que é
essencial em minha vida?
186
Elaboro um projeto
quando respondo às perguntas, básicas: o que, por que, quem, como, onde,
quando, quanto. Planejo a realização quando relaciono as tarefas necessárias
para alcançar o que desejo. Se as tarefas estão numa coluna, crio outras quatro
colunas ao lado. E numa anoto até que dia, noutra quem é responsável, em mais
outra quanto custa e numa última escrevo as observações.
187
Será?
Resistências ao sonhar e refletir
desconsideram as origens do fazer.
Práticas comprovam que resultados
são efetivados e multiplicados quando ações são sonhadas, sentidas, pensadas
com antecedência.
Há espaço para ética
individual. A pessoa que se cultiva ética, pratica suas escolhas do que pensa,
do que fala, do que age.
Pessoas que em si
cultivam ética têm empatia por quem também.
Uma instituição se
torna ética quando se compõe por pessoas que se cultivam éticas.
Fica mais claro
quando a ética está presente. Visões de mundo se ampliam. Saques, insights, compreensões palpitam. Palpita
vida.
Controles se tornam
desnecessários quando a ética está presente. São naturais as relações de
confiança e afetos.
Conteúdos são função das visões de
mundo, tanto de quem cria
quanto de quem facilita, realiza.
Quando me identifico
afetivamente com o que faço, trabalho é prazer.
Quando o trabalho é
um prazer, eu sou o trabalho. Sou soluções.
188
Quando me deixo isolar pelas tarefas do
dia-a-dia, minhas reflexões se ausentam, me acomodo.
189
Como imagino comum, não sei da importância do que faço. Descubro nos frutos.
190
Construção da doença. Hoje vejo a
morte – ou a vida – como escolha, em cada ato que faço a favor ou contra mim.
Agradeço a quem me facilita estar vivo. A mim, que fiz, faço – e fui, sou – o
que soube, sei ser.
191
Numa livraria, mundos. Em cada
um, nas linhas e entrelinhas, no dito e no não dito, pontas como de icebergs.
Desisti de compreender tudo. Já basta o mundo que sou.
192
Nunca tive um time
de futebol de coração. Mas adoro jogadas bonitas.
193
Tento me limitar. Sou pouco pro
que desejo. Mas conversar, topo.
194
Tudo novo. Tentativas, tropeços,
bambeios, aprumos e de novo. Sinto que a direção permanece. Aprendo?
195
Tudo o que desejo imagino tão
pouco. Talvez seja muito. Desacelero?
196
Volta e meia, mexidas. Cada vez
não fazer me atrai mais. Quero me guiar pelo que vivo no caminho.
197
Entre o desejo e a realização
tenho gasto um tanto de mi vida.
198
Quando feliz,
lembro a sorte que tenho em desejar quem me deseja.
199 Volta e meia
penso como desejo viver no futuro, o que não vivo hoje mais o que já gosto.
Hoje pro futuro penso ser disponível o tempo todo pra escolha que me enleva. E
assim gravar, escrever quando desejo. Antes, as relações com quem vivo,
convivo.
200 Aprendo quando
presto atenção no que penso, no que sinto, falo, faço. Só sinto se presto
atenção. Se sinto – e não presto atenção – imagino presente, na memória
inconsciente. o ausente no consciente. Um baú, em algum lugar de mim.
201 Filosofar é...
pensar fora de mim? Pensar dentro de mim? E pensar liga em que com sentir? Ou é
só livre pensar?
201 As coisas
práticas: trazer a garra, prender o abajour
à prateleira de cima. Apoiar a venda do apartamento da amiga, acompanhar a
compra do outro. Interagir na diagramação do livro, articular a impressão,
facilitar a distribuição. Há uma lista mutável. Cada objetivo, um conjunto de
tarefas. Defino prioridades, relaciono as tarefas e, nos seus tempos, cada
objetivo se realiza ou se transforma.
202 Lia O Cruzeiro. Copacabana, beleza,
aventura, alegria. Desejava vir pra cá, estudar no Pedro II, morar no Rio. Eu,
14 anos, ali em Montes Claros, 1960. 1971, cheguei. Almejava dinheiro, mulher,
glória. Agora sinto saúde, sossego e meu sucesso é outro. Lá fundo, desconfio
era este meu desejo. E não sabia.