quarta-feira, 19 de abril de 2017

um quase nada de quase tudo - uma vida incomum como qualquer um 05



uma vida incomum como qualquer um 05

um quase nada de quase tudo

Então ficamos assim: falo bem de você, você fala bem de mim. Uma dificuldade enorme, aqui, de aceitar elogios e agradecimentos. Vou aprendendo, mesmo sabendo que muito do que me move é minha própria satisfação. E identificação. Relembro Marx, o Groucho: clube que me aceita como sócio eu não entro. Não deve prestar.

Sinal de saúde, me orgulho: não sei onde fica meu fígado. Sujismundo era um personagem sempre rodeado de moscas, sujo, sujador. A campanha na TV foi
eficaz: quem jogava papel na rua, se olhado como Sujismundo, se envergonhava, recolhia o papel, se recolhia. A atitude sujismundo gerava culpa e vergonha. A cidade do Rio ficou mais limpa por um tempo.

Tive notícia também – salvo engano, ali pela Escandinávia – de anúncio audiovisual em que um carro passava excessivamente veloz e, plano seguinte, uma moça fazia um sinal para outra moça – dedo indicador se aproxima de dedo polegar – sugerindo a pequenez talvez do pau do motorista. Anúncios que geram culpa e vergonha.

Imagino agora campanhas publicitárias positivas gerando satisfação e prazer, valorizando a afetuosidade de quem contribui pruma vida coletiva melhor. É que, passado um tempo, meus convivas contemporâneos acreditam mais no que sou, no que faço, do que no que falo e não faço e não sou. Alegria gera alegria, gentileza gera gentileza.

Exemplo de campanha assim, pra cima, relembro os conceitos de Pontes para divulgação de colônia de férias pra crianças numa favela: todo mundo é, todo mundo pode ser. O outro, este voltado para a universidade popular: o saber em todo o ser.

Agora eu sei. Cada ato talvez tenha um significado. Quando fumo, agrido meu próprio corpo. Se ajo assim comigo, com o outro mais ainda. Sou então coerente quando jogo cigarro no chão, invado um sinal vermelho, dou um tapa, um tiro, solto uma palavra indelicada. Mas já sei que outros equilíbrios são possíveis, quando transcendo minha cultura masoque, cuido de outros ao cuidar de mim. Se não cuido de mim, como cuidarei de outros?

Tenho lembranças do século XIX, são reais. Na década de 40 do século XX, Salinas estava longe dos grandes centros. As modas chegavam tempos depois. Sem rádio, televisão, jornal. As notícias corriam, lentas, de boca em boca. Os causos contados na porta de casa eram de mula sem cabeça, almas penadas.

Os costumes eram antigos. No porão da sua casa, tia Odília guardava os ossos de seu pai, meu bisavô. Pra se pentear, ela subia num banquinho e só então soltava os cabelos que chegavam ao chão. Fazia linguiça. Enfiava ingredientes na tripa de porco. Para socar, usava uma chave grande, antiga. E quando curioso eu perguntei: que é isto, tia? E ela – chouriço, menino.

Carrego dentro de mim o que então vivi. Carrego tudo, mesmo agora, cidadão do mundo, o horizonte mais próximo, tudo tão mutante. Repito e tento: separar o que é meu, o que do outro, especialmente os sentimentos. E quanto aos objetos e moedas, mais do que possuo as coisas, são as coisas que me têm.

Wilhelm Reich me ensinou, na teoria e na prática: meu corpo traz minha história. Quando faço o que gosto, sem perceber trabalho o tempo todo. Quando cai minha ficha, vejo o mundo diferente.

Tento crescer, mas inda é difícil suportar alegrias. Tristeza é fácil, matava no peito todo dia. Posso me comunicar com o mundo. Quando compartilho, me acalmo, melhoro. Se não me permito, a outros inibo.

Dou o livro que gosto, nem sei o que o presenteado deseja. Só dou o que tenho. Meu corpo hoje me fala, volta e meia me relembra: se quero dormir bem, 5 horas antes já não como. Se como, regurgito, durmo sentado.

Nos sonhos realizo meus desejos? Parece que quando vivencio situações sou quem melhor poderia conhecer estas situações que vivencio. Assim, talvez, potencialmente, seja eu quem melhor saiba das soluções das questões que vivencio. A consciência desta sabedoria talvez determine a possibilidade de ação transformadora em mim.

Há expressões de outros – falas, atos, artes, escritos... – que me despertam consciências.

Luiz Fernando Sarmento













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