uma vida incomum como qualquer um 05
um quase nada de quase tudo
Então ficamos
assim: falo bem de você, você fala bem de mim. Uma dificuldade enorme, aqui, de
aceitar elogios e agradecimentos. Vou aprendendo, mesmo sabendo que muito do
que me move é minha própria satisfação. E identificação. Relembro Marx, o
Groucho: clube que me aceita como sócio eu não entro. Não deve prestar.
Sinal de saúde, me
orgulho: não sei onde fica meu fígado. Sujismundo era um personagem sempre
rodeado de moscas, sujo, sujador. A campanha na TV foi
eficaz: quem jogava
papel na rua, se olhado como Sujismundo, se envergonhava, recolhia o papel, se
recolhia. A atitude sujismundo gerava culpa e vergonha. A cidade do Rio ficou
mais limpa por um tempo.
Tive notícia também
– salvo engano, ali pela Escandinávia – de anúncio audiovisual em que um carro
passava excessivamente veloz e, plano seguinte, uma moça fazia um sinal para
outra moça – dedo indicador se aproxima de dedo polegar – sugerindo a pequenez
talvez do pau do motorista. Anúncios que geram culpa e vergonha.
Imagino agora
campanhas publicitárias positivas gerando satisfação e prazer, valorizando a
afetuosidade de quem contribui pruma vida coletiva melhor. É que, passado um
tempo, meus convivas contemporâneos acreditam mais no que sou, no que faço, do
que no que falo e não faço e não sou. Alegria gera alegria, gentileza gera
gentileza.
Exemplo de campanha
assim, pra cima, relembro os conceitos de Pontes para divulgação de colônia de
férias pra crianças numa favela: todo mundo é, todo mundo pode ser. O
outro, este voltado para a universidade popular: o saber em todo o ser.
Agora eu sei. Cada
ato talvez tenha um significado. Quando fumo, agrido meu próprio corpo. Se ajo assim
comigo, com o outro mais ainda. Sou então coerente quando jogo cigarro no chão,
invado um sinal vermelho, dou um tapa, um tiro, solto uma palavra indelicada.
Mas já sei que outros equilíbrios são possíveis, quando transcendo minha
cultura masoque, cuido de outros ao cuidar de mim. Se não cuido de mim, como
cuidarei de outros?
Tenho lembranças do
século XIX, são reais. Na década de 40 do século XX, Salinas estava longe dos
grandes centros. As modas chegavam tempos depois. Sem rádio, televisão, jornal.
As notícias corriam, lentas, de boca em boca. Os causos contados na porta de
casa eram de mula sem cabeça, almas penadas.
Os costumes eram antigos.
No porão da sua casa, tia Odília guardava os ossos de seu pai, meu bisavô. Pra
se pentear, ela subia num banquinho e só então soltava os cabelos que chegavam
ao chão. Fazia linguiça. Enfiava ingredientes na tripa de porco. Para socar,
usava uma chave grande, antiga. E quando curioso eu perguntei: que é isto,
tia? E ela – chouriço, menino.
Carrego dentro de
mim o que então vivi. Carrego tudo, mesmo agora, cidadão do mundo, o horizonte mais
próximo, tudo tão mutante. Repito e tento: separar o que é meu, o que do outro,
especialmente os sentimentos. E quanto aos objetos e moedas, mais do que possuo
as coisas, são as coisas que me têm.
Wilhelm Reich me
ensinou, na teoria e na prática: meu corpo traz minha história. Quando
faço o que gosto, sem perceber trabalho o tempo todo. Quando cai minha ficha,
vejo o mundo diferente.
Tento crescer, mas
inda é difícil suportar alegrias. Tristeza é fácil, matava no peito todo dia. Posso
me comunicar com o mundo. Quando compartilho, me acalmo, melhoro. Se não me
permito, a outros inibo.
Dou o livro que
gosto, nem sei o que o presenteado deseja. Só dou o que tenho. Meu corpo hoje
me fala, volta e meia me relembra: se quero dormir bem, 5 horas antes já não como.
Se como, regurgito, durmo sentado.
Nos sonhos realizo
meus desejos? Parece que quando vivencio situações sou quem melhor poderia
conhecer estas situações que vivencio. Assim, talvez, potencialmente, seja eu quem
melhor saiba das soluções das questões que vivencio. A consciência desta
sabedoria talvez determine a possibilidade de ação transformadora em mim.
Há expressões de
outros – falas, atos, artes, escritos... – que me despertam consciências.
Luiz Fernando Sarmento
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