quinta-feira, 19 de outubro de 2017

adulto jovem - 07 uma vida incomum como qualquer um






adulto jovem

outros dias
Descobri que quando alguém me diz não! Devo rapidim verificar se este não é de quem diz ou é meu. Volta e meia querem cortar meu cabelo, mudar meu jeito, trocar minha camisa, que eu construa uma pirâmide. Normalmente é problema de quem tem problema com seu próprio cabelo, seu jeito, camisa. E de quem complica sua vida construindo as pirâmides que inventa.

Agora mesmo agradeço oportunidade de me candidatar a recursos para realizar documentário que quero. O assunto, terapia comunitária, me interessa profundamente. Mas me angustiam prazos, prestações formais de contas, limitações externas de conteúdos.

Acordei já com o estômago contraído. Decido pelo que desejo e está ao meu próprio alcance, com meus recursos e tempos. Imediatamente meu corpo relaxa, meus pensamentos se aquietam, me acalmo.

Nada a ver, tudo a ver, uma quase dúvida: juventude é estado de espírito? E velhice?

Amsterdam se foi inesperadamente. A morte da mãe de Ana nos trouxe de volta. Fomos até Cádiz, atravessamos o estreito de Gibraltar, Marrocos. Meu rabo de cavalo agora em coque, receio não ser aceito cabeludo em cultura estranha. Tetuan, o ônibus tosco pega e deixa pelo caminho gente, carga e animais. Punhais saem de djelabs para descascar frutas, cortar nacos de carne. Camelos passam ao largo. Aos trancos, Marrakesh.

No Zoco, mercado central, montes de castanhas, aquela música serpenteante vinte e quatro horas por dia. Gente que conversa pegando na gente. Um que passa com duas luvas de boxe à procura de contendores que apostem no seu próprio taco. Às tardinhas, o mesmo personagem – agachado como seus espectadores – conta histórias como novelas.

Um menino me puxa e oferece, atento a tudo – kif, kif, cinq dirrans! Compro aquela mão cheia de maconha - haxixe? - vou esgueirando pra pensão, aperto um baseado com alguns desconhecidos aventureiros espanhóis, fica tudo escuro de repente, perco a visão por catorze horas. Badtrip.

Talvez decorrência daquele ácido potente que tomei inocente no banheiro em Amsterdam, alguns dias atrás – fiquei então seis horas em orgasmo contínuo, e outras tantas em puro terror, a zanzar pelas ruas e canais da cidade estranha. Na África a visão voltou, meus medos me fizeram limitar-me ao botequim frequentado por europeus errantes como eu.

Enquanto Ana, como se estivesse em casa, já com vestimenta local, andava pelos becos a descobrir de um tudo da cidade e sua gente. Só Jung pra explicar esta memória ancestral de Ana, nascida Aben-Athar.

Pegamos o destino errado, na volta. Só homens no vagão, o chefe de trem sacou o perigo e nos acomodou numa cabine isolada. Passada a noite em nebulosa direção, retomamos não sei como o caminho para Casablanca. Dali, Espanha, Portugal ainda salazariano, avião pro Brasil de Médici. Ou Geisel.

No Rio, busca de uma nova rotina, burocracias. Nos meses que antecederam a ida pra Europa morávamos sete numa casa, comunidade urbana criada por nós – Ana, Paulo Cangussú e eu. Inicialmente três, colocamos anúncio em jornal, talvez Pasquim ou JB, e acolhemos quatro desconhecidos.

Era tanto movimento que volta e meia dormíamos fora, em busca de sossego. Uma vez, em Ipanema, na praia, quando acordamos, Paulo, primo amigo comunitário original, deu por falta dos óculos. Procura dali e daqui, rastros de ratos nos levaram aos seus buracos. As lentes continham celulose, apetitosa pros roedores. Foram-se os óculos.

Outra vez abri a parte de cima do armário do meu quarto e, lá, numa sacola das Casas da Banha, daquela de papel, canabis até o tampo. Surpresa que explicou tamanho entra e sai de gente estranha. Talvez ali a gota d’água pra dissolver a casa e a comunidade.


Luiz Fernando Sarmento









Nenhum comentário:

Postar um comentário