uma vida incomum como qualquer um 17
Pra ler no banheiro
Quanto mais
me conheço, melhor vivo e cresço. E, se meus desejos expresso,
vivo. Se guardo tudo, inconfesso, morro.
Uma decisão a cada momento, eternas decisões
indecisas. Eterna indecisão, lamento. Nunca decisão precisa. O que é certo ou
errado? Que crime merece castigo? Onde vou, pra que lado? Eu não sei, sabe o
amigo?
Difícil é suportar alegria. Tristeza era fácil, matava
no peito todo dia.
Daquilo que um faz, dali nasce a paz. Se erra, dali nasce a guerra.
Se reflito,
duvido. Se escolho, defino.
Mas, estar contente, aprendo sendo, no
presente.
Que
decretos pessoais posso baixar em minha própria vida, que mudem, em mim, minha
maneira de ser?
Volta e meia, vou pela intuição. Isto que sei
e nem sei que sei.
Um quase nada de quase tudo
Então ficamos assim: falo
bem de você, você fala bem de mim. Uma dificuldade enorme, aqui, de aceitar
elogios e agradecimentos. Vou aprendendo, mesmo sabendo que muito do que me
move é minha própria satisfação comigo mesmo. E identificação. Um terapeuta
amigo sacou e me facilitou a vida...
Só reconheço no outro o que tenho em mim.
Passado um tempo,
meus convivas contemporâneos acreditam mais no que sou, no que faço, do que no
que falo e não faço e não sou. Alegria gera alegria, gentileza gera gentileza.
Agora eu sei. Cada
ato talvez tenha um significado. Quando fumo, agrido meu próprio corpo. Se ajo assim
comigo, com o outro mais ainda. Sou então coerente quando jogo cigarro no chão,
invado um sinal vermelho, dou um tapa, um tiro, solto uma palavra indelicada.
Mas já sei que outros equilíbrios são possíveis, quando transcendo minha
cultura masoque, cuido de outros ao cuidar de mim. Se não cuido de mim, como
cuidarei de outros?
Tenho lembranças do
século XIX, são reais. Na década de 40 do século XX, Salinas estava longe dos
grandes centros. As modas chegavam tempos depois. Sem rádio, televisão, jornal.
As notícias corriam, lentas, de boca em boca. Os causos contados na porta de
casa eram de mula sem cabeça, almas penadas.
Os costumes eram antigos.
No porão da sua casa, tia Odília guardava os ossos de seu pai, meu bisavô. Pra
se pentear, ela subia num banquinho e só então soltava os cabelos que chegavam
ao chão. Fazia linguiça. Enfiava ingredientes na tripa de porco. Para socar,
usava uma chave grande, antiga. E quando, curioso, eu perguntei: que é isto,
tia? Ela – chouriço, menino.
Carrego dentro de mim
o que então vivi. Carrego tudo, mesmo agora, cidadão do mundo, o horizonte mais
próximo, tudo tão mutante. Repito e tento: separar o que é meu, o que do outro,
especialmente os sentimentos. E, quanto aos objetos e moedas, mais do que
possuo as coisas, são as coisas que me têm.
Wilhelm Reich me
ensinou, na teoria e na prática: meu corpo traz minha história. Quando
faço o que gosto, sem perceber trabalho o tempo todo. Quando cai minha ficha,
vejo o mundo diferente.
Tento crescer, mas
inda é difícil suportar alegrias. Tristeza é fácil, matava no peito todo dia. Posso
me comunicar com o mundo. Quando compartilho, me acalmo, melhoro. Se não me
permito, a outros inibo.
Luiz Fernando Sarmento
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