Passatempo
Vagueio.
Hoje acordei assim, diferente de mim. Sinto o que o outro sente. Sua alegria me
alegra, sua tristeza me entristece. Minha razão diz não, a emoção emerge e
prevalece. Talvez eu seja mais que só eu, talvez eu seja parte de um todo, como
outros.
Onde
vou, carrego o que sou. Muda a paisagem, o ar, o tempo. Mudam os cheiros, os
gostos, os sons. Eu permaneço. Tudo tão insólito, contraditório, sou um e sou
outro, sou só e sou o todo, simples e complexo.
Desejo
ser o que não sou, sofro. Como diz o outro, mentir pra mim não posso. Ficam as
esperanças, que passem as tempestades, que venham as bonanças, que se mostrem
minhas metades, que saia o adulto, que me chegue a criança. Minha difusa
memória vislumbra outra história, contínuas vida e morte, ausentes tempo e
espaço, azar e sorte, fêmeo e macho. Nem imagino, perdido me acho.
*
Um
dia fui anestesiado, minhas tensões dissolvidas, um fluxo constante, um vai e
vem. Eu, meio firme, meio tonto, só a pulsar, ora infinito, ora ponto. Eu era
um e era o todo.
Êxtase
assim, mesmo diferente, quando me sentei naquele salão mineiro, em meio à
pequena multidão, à espera do Dr. Fritz. Eu, meio crítico, meio ausente. De
repente, me sobe um fluxo, uma sensação que não sabia, uma nunca antes vivida
alegria.
Também
não entendi aquele outro dia, antes, lá nas Holandas. O ácido bateu, me pegou
de supetão, céus ao léu, eterno enquanto durou. Também momento eterno, o
inferno, sofrimento posterior. Passou.
Tudo
passou, como passa tudo, mas ficou a fé em mim, no que sou. É que, inda sinto,
a fé vem da experiência. Como em São Tomé. Talvez sorte. Lá se foram, um tanto,
o medo da vida, o medo da morte.
*
Antes,
há pouco, era mais difícil suportar alegrias. Tristeza era fácil, matava no
peito todo dia. É que, na infância, me tocou uma cultura pesada, inesperada, a
inocência trocada pelo medo daquele fogo eterno, o amor subjugado pelo temor.
Ai de mim, lamento, me chegou assim, em forma
de mandamentos: todo prazer é pecado. A todo pecado, castigo. De cada
castigo, medo... se pecador é consigo. Tristeza, remorso, culpa. O paraíso
perdido. Crente, clemente, confessa. Curva, ajoelha, reza. Seu amor-próprio despreza.
Volta a ser comedido.
*
Hoje, racionalizo,
compreendo. Esta razão, um tanto, me acalma. Mas, agora sei, outro perigo, a
emoção emerge e prevalece.
Associo, então, o
prazer ao castigo. Quase automático: se vem prazer, lá vem castigo. Pra evitar
o castigo, evito o prazer. Por isto – intuo, não só comigo - no dia a dia,
difícil suportar alegrias.
Como viver, bem,
neste mundo, do jeito que ele é, a toda hora me pergunto. E vou e fico e vivo.
Sei, já, não posso sentir o que o outro sente, não posso viver o que o outro
vive. Constante aprendizado, isto de viver. Tenho medo de meus medos. Que fraquezas me
escondem minha aparente coragem? E este meu eventual complexo de superioridade
esconde o de inferioridade?
*
Em cada alegria, vivo. Em cada tristeza, morro.
Ao meu lado vivo, peço socorro. Enfim, sou remédio de mim. Escolho que vivo. E
consigo, a cada cuidado que tenho comigo.
*
Do que me lembro, antes, na minha Montes Claros
adolescente, anos 50, comunistas, negros, gays, crentes sofriam discriminações
semelhantes às que hoje sofre quem vive diferente da gente. Tento me estar
atento, pra não perder, de novo, oportunidades de reconhecer quem me acresce.
Por outro lado, meus cabelos grandes afastam de mim quem me discrimina.
*
Salinas,
Macondo, Tarouca, tantos lugares, o mesmo lugar? Acordei assim, aqui, hoje, em
Portugal. Esta preguiça misturada, vontade indefinida de escrever o que bem me
vem.
Luiz
Fernando Sarmento
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