domingo, 3 de novembro de 2024

07 adulto jovem


 


07


Punhais saem de djelabs para descascar frutas, cortar nacos de carne. Camelos passam ao largo. Aos trancos, Marrakesh.

adulto jovem


outros dias

Descobri que quando alguém me diz não! devo rapidim verificar se este não! é de quem diz ou é meu. Volta e meia querem cortar meu cabelo, mudar meu jeito, trocar minha camisa, que eu construa uma pirâmide. Normalmente é problema de quem tem problema com seu próprio cabelo, seu jeito, camisa. E de quem complica sua vida construindo as pirâmides que inventa.


Agora mesmo agradeço oportunidade de me candidatar a recursos para realizar documentário que quero. O assunto, terapia comunitária, me interessa profundamente. Mas me angustiam prazos, prestações formais de contas, limitações externas de conteúdos.


Acordei já com o estômago contraído. Decido pelo que desejo e está ao meu próprio alcance, com meus recursos e tempos. Imediatamente meu corpo relaxa, meus pensamentos se aquietam, me acalmo.


Nada a ver, tudo a ver, uma quase dúvida: juventude é estado de espírito? E velhice?


Amsterdam se foi inesperadamente. A morte da mãe de Ana nos trouxe de volta. Fomos até Cádiz, atravessamos o estreito de Gibraltar, Marrocos. Meu rabo de cavalo agora em coque, receio não ser aceito cabeludo em cultura estranha. Tetuan, o ônibus tosco pega e deixa pelo caminho gente, carga e animais. Punhais saem de djelabs para descascar frutas, cortar nacos de carne. Camelos passam ao largo. Aos trancos, Marrakesh.


No Zoco, mercado central, montes de castanhas, aquela música serpenteante vinte e quatro horas por dia. Gente que conversa pegando na gente. Um que passa com duas luvas de boxe à procura de contendores que apostem no seu próprio taco. Às tardinhas, o mesmo personagem – agachado como seus espectadores – conta histórias como novelas.


Um menino me puxa e oferece, atento a tudo – kif, kif, cinq dirrans! Compro aquela mão cheia de maconha – haxixe? – vou esgueirando pra pensão, aperto um baseado com alguns desconhecidos aventureiros espanhóis, fica tudo escuro de repente, perco a visão por catorze horas. Badtrip.


Talvez decorrência daquele ácido potente que tomei inocente no banheiro em Amsterdam, alguns dias atrás – fiquei então seis horas em orgasmo contínuo, e outras tantas em puro terror, a zanzar pelas ruas e canais da cidade estranha. Na África a visão voltou, meus medos me fizeram limitar-me ao botequim frequentado por europeus errantes como eu.


Enquanto Ana, como se estivesse em casa, já com vestimenta local, andava pelos becos a descobrir de um tudo da cidade e sua gente. Só Jung pra explicar esta memória ancestral de Ana, nascida Aben-Athar.


Pegamos o destino errado, na volta. Só homens no vagão, o chefe de trem sacou o perigo e nos acomodou numa cabine isolada. Passada a noite em nebulosa direção, retomamos não sei como o caminho para Casablanca. Dali, Espanha, Portugal ainda salazariano, avião pro Brasil de Médici. Ou Geisel.


No Rio, busca de uma nova rotina, burocracias. Nos meses que antecederam a ida pra Europa morávamos sete numa casa, comunidade urbana criada por nós – Ana, Paulo Cangussú e eu. Inicialmente três, colocamos anúncio em jornal, talvez Pasquim ou JB, e acolhemos quatro desconhecidos.


Era tanto movimento que volta e meia dormíamos fora, em busca de sossego. Uma vez, em Ipanema, na praia, quando acordamos, Paulo, primo amigo comunitário original, deu por falta dos óculos. Procura dali e daqui, rastros de ratos nos levaram aos seus buracos. As lentes continham celulose, apetitosa pros roedores. Foram-se os óculos.


Outra vez abri a parte de cima do armário do meu quarto e, lá, numa sacola das Casas da Banha, daquela de papel, cannabis até o tampo. Surpresa que explicou tamanho entra e sai de gente estranha. Talvez ali a gota d’água pra dissolver a casa e a comunidade.




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