quarta-feira, 17 de julho de 2024

76 passado presente



76


...mais se lembra quem apanha.


passado presente



Às vezes, eu mesmo me esqueço do meu passado. Relembro quando alguma emoção, agora presente, cutuca minhas memórias.


Em Salinas, difusas lembranças, os colos amorosos, os murmúrios e movimentos das feiras, o rolar no chão com o cachorrinho amigo, os futebóis com os primos, vovô Quelé a comer melancia, a roça, as bruacas, os cheiros da chuva, dos animais, o leite espumante e morno, o calorão que, até hoje, me esquenta.


*

Cheguei a Montes Claros com a inocência da minha primeira infância. Meus desejos de consumo despertaram diante da primeira vitrine, ali na rua Quinze.


Meus medos aterrorizantes, com as cruéis palavras do catequizador, vindos ao falar do eterno fogo do inferno e eu sem saber distinguir entre pecados capitais e veniais. Reforçados, depois, pelos irmãos maristas que, soube tempos depois, muitos dos que nos orientavam, mudaram de rumos, não permaneceram celibatários como, acredito inocentemente, juraram ser durante todas suas vidas. Juras eternas, corro de medo.


Aqui, parodiando, me lembro de quem nunca li, Rimbaud ou Verlaine: perdi, um tanto, minha vida por educação.


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Meus nascentes medos de gente, ao passar, inocente, pelas brutas brincadeiras violentas da turma sediada nas escadas em frente ao Clube Montes Claros. Meninos brabos.


Mesmo violentos, naqueles tempos, ainda inocentes-ignorantes como eu, hoje – se arrependidos – os perdoo, se perdão pedem. Desejo pra eles o que pra mim desejo, que cuidem de si, que degustem felicidades quanto maiores suas idades.


Como peço perdão àqueles que, por desventura, eu tenha feito mal, no correr da minha vida. Parece que mais se lembra quem apanha. Quem bate, talvez por não sentir a dor, por não ficar marcado, se esquece.


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Sei em mim, hoje – e procuro praticar – pequenos atos que faço determinam o que sinto. Atos simples, relacionados ao que como, ao que leio, vejo, ouço, toco, cheiro. Ao que falo, ao que penso. Alguma leveza me invade quando escolho cultivar belezas que a vida, a natureza, me oferecem.


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Nunca soube brigar de fato. Mamãe, categórica: brigou na rua, apanha em casa. Eu apanhava na rua, apanhava em casa. Para evitar surras, pré-adolescente ainda, cultivei meu eu espirituoso, fazia gracinhas, piadinhas ditas inteligentes.


Fugi, e fujo, de brigas. Cacilda Becker me ajuda: não tenho tempo pra lutar contra. Só luto a favor. Por minhas escolhas, minha vida tem sido melhor. Meu corpo se revigora a cada movimento, caminhada, a cada respirada profunda, a cada garfada vegana, orgânica, sem agrotóxicos. Minha consciência levita, a cada leve sentimento. Viva os que produzem alimentos saudáveis – sejam físicos ou espirituais.


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Volta e meia, tropeço, erro de novo. E, de novo, recomeço, tento, reaprendo. Escolho a vida que vivo. Sou o que estou. Vivo o que percebo do que sinto.


Mentir pra mim mesmo, não minto. Nem pro outro, que, hoje sinto e sei, é eu. Sou parte do todo, como todos.


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Talvez, um tanto, eu tenha mudado pra longe, e longe permanecido, pra me facilitar ser eu mesmo. Fiz a faculdade na Universidade de Brasília. Sonhei com o Rio, fui pro Rio. Desejei o mundo, cai na estrada. Amsterdam, Londres, Maputo. Como um caderno novo, vida com páginas em branco. Novos relacionamentos, outras escolhas.


Mas, ô beleza, motivos para alegrias, carrego Salinas e Montes Claros em mim. E gosto, há boas lembranças. Os passeios a pé e de bicicleta, a família, a piscina da praça de esportes, as horas dançantes do Golden Club, Beto Guedes cantando People com os Brucutus, os inocentes namoros, as solidariedades amigas, os amigos, as moças das zonas, as comidas, as descobertas.


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Pra não quebrar meus dentes, cato o feijão, tiro as pedrinhas, cozinho e, só então, como. Já, pra não me fazer mal – nem a ninguém – escolho com quem ando e convivo. Prefiro, próximo, alguém amado, nunca armado. Arma machuca, tanto o outro como a mim. Amor me comporta, me conforta, me alegra.


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Ô alegria, que a compaixão invada nossos corações. Que cada um de nós cuide de outras e outros como cuida de si.


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Mensagem a uma prima e amiga. Oi. Lina me falou do falecimento do seu sobrinho, meu primo que não cheguei a conhecer… Cada vez mais tenho acreditado em vida depois da vida, o que muito me conforta, também em relação a outros entes queridos que se foram. Venho lhe dar um abraço afetuoso. Com o desejo de uma vida plena – para você e os seus e os nossos – do jeito que você goste, lhe faça bem... e a outros também. Bons dias, agora e depois, pra você, pra nós.









 

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